Rola alheia - Igor Dias
Rola alheia
(A
cena é protagonizada por Cadu e Celina, durante um café da manhã. Ao longo da
cena, Celina passa de um estado tranquilo ao de uma preocupação verdadeira, com
rompantes histéricos. Cadu sustenta durante a cena inteira uma postura dúbia,
confundindo o espectador entre a seriedade e o sarcasmo. O diálogo, que deverá
ser lido por duas pessoas, começa pela fala de Cadu)
-
Celina, não vai tomar café hoje?
-
Já vou, amor.
-
Olha, eu pensei muito por esses dias no que você me disse. Acho que podemos
negociar a rola alheia.
-
Sério, Cadu?
-
Sério. Tenho tentado me convencer de que a monogamia é só mais uma coisa
culturalmente imposta pela sociedade opressora e blablablá.
-
Nossa, Cadu. Obrigado, não sei nem o que dizer. Acho que eu não esperava por
isso.
-
Você agora tem a liberdade de procurar na rua a rola que você quiser. Pode escolher:
rola grossa, rola fina, rola veiuda. Agora você é livre pra ter o seu próprio
canavial de rola. Nada vai mudar entre a gente.
-
Você tá me sacaneando?
-
Claro que não. Eu tô tentando instituir com você esse novo passo na nossa
relação, o acordo da rola alheia.
-
Como assim? Nao vai ter nenhuma contrapartida? Você não quer liberdade também?
-
Claro, ué! Nesse acordo que a gente tá fazendo, a rola alheia passa a ser um
direito natural e inalienável de cada um dos membros do casal. Portanto, eu
também passo a ter acesso a todas as rola alheias que eu quiser.
-
Rarrarrá!
-
O que foi?
-
Você não gosta de rola, Carlos. Ou gosta?
-
Ué, não sei. Nunca experimentei.
-
E você pretende experimentar?
-
Mas é claro! Por que não? É um direito meu. Aliás, um direito nosso.
-
Carlos Eduardo, não estou gostando desse acordo. Não consigo imaginar o meu
marido por aí na rua com outro homem, isso é uma estupidez. Não quero negociar
mais isso. Eu achei que você fosse querer negociar transar com outras mulheres.
-
Não, Celina. Esse não é o acordo do casamento aberto que você viu naquele
encontro do poliamor, nem aquele outro que a Kátia fez com o Tiago. Esse é um
acordo da nossa relação, particular, só da gente. É o acordo da rola alheia, do
jeito que você quis.
-
Eu não quis isso.
-
Claro que quis. Você falou da liberdade de ter a rola que você quiser. Só estou
estendendo essa liberdade a todos os membros do casal.
-
Cara, você tá louco.
-
E você, não?
-
Eu não. Eu só queria a rola de outras pessoas.
-
E você acha que aceitar esse tipo de acordo é fácil pra mim?
-
Ué, sei lá. A gente pergunta, né...
-
Celina, eu preciso ir trabalhar. Não tenho mais tempo pra ficar te ouvindo. Vai
correr atrás das suas rolas que eu vou correr atrás das minhas.
-
Cadu, não faz isso.
-
Isso o que?
-
Correr atrás de rola.
-
Traz pra casa o cara que você pegar.
-
Oi?
-
Isso, traz pra casa. Viu na rua e achou legal, se tem uma rola bonita, maneira,
traz pra casa.
-
Hã?
-
Isso, a gente pega o cara junto.
-
Cadu, para com essa merda!
-
Você que começou.
-
Não vai ter acordo nenhum!
-
Mas, Celina? E aquele papo que a gente estava tendo? A gente estava evoluindo
tão bem... Olha, são três bilhões e meio de rolas no mundo. Se a gente dividir
entre a gente, sem pegar a rola que o
outro pegou, dá pouco mais de um bilhão e meio de rolas pra cada um. Dá pra
ficar tudo certo entre a gente, sem ciúmes.
-
Não quero bilhões de rola, seu bobão, eu quero uma só.
-
Eu também quero uma só. Pra começar de leve, sabe. Só ainda não decidi a de
quem. Você tem alguma sugestão de rola alheia pra me dar?
Conto
escrito para o encontro de 09/11/2015
Igor
Dias nasceu no outono de 1987, na cidade do Rio de Janeiro. Participa dos
coletivos literários "Clube da Leitura" e "Caneta, Lente &
Pincel". É autor dos livros "Além dos Sonetos Breves"
(poesia) e "Dinamarca" (contos) ambos lançados pela Editora
Oito e Meio em 2012 e 2015, respectivamente.
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