E se o Diabo falasse...., por Alejandro Jodorowsky

Sou Lúcifer, portador da luz. Meu dom magnífico à humanidade é a ausência absoluta de moral. Nada me limita. Transgrido todas as leis, queimo as constituições e os livros sagrados. Nenhuma religião pode me conter. Destruo todas as teorias, faço explodir todos os dogmas.

“No fundo do fundo do fundo, ninguém mora em lugar mais profundo do que eu. Sou a origem de todos os abismos. Sou aquele que dá vida às grutas escuras, aquele que conhece o centro em torno do qual orbitam todas as densidades. Sou a viscosidade de tudo aquilo que em vão tenta ser formal. A suprema força do magma. A pestilência que denuncia a hipocrisia dos perfumes. A carniça mãe de cada flor. A corrupção dos espíritos vaidosos que se comprazem na perfeição.

“Sou a consciência assassina do efêmero perpétuo. Sou eu, encerrado no subterrâneo do mundo, quem faz tremer a catedral estúpida da fé. Sou eu quem, ajoelhado, morde e faz sangrar os pés dos crucificados. Quem apresenta ao mundo, sem pudor, minhas feridas abertas como vaginas famintas. Violo o ovo podre da santidade. Finco a ereção do meu pensamento no sonho mórbido dos hierofantes, para cuspir em seu simulacro de plenitude o esperma frio do meu desprezo.

“Não há paz comigo. Não há doce lar estabelecido. Nem evangelhos edulcorados. Nem virgem de açúcar para as línguas úmidas das freiras peludas. Defeco solenemente sobre os pássaros leprosos da moral. Não me proíbo de imaginar um profeta de quatro montado por um asno no cio. Sou o cantor extasiado do incesto, o campeão de todas as depravações, e abro deliciado, com a unha do dedo mínimo, as tripas de um inocente para ali molhar meu pão.

No entanto, no mais profundo do profundo da caverna humana, acendo a tocha que organiza as trevas. Por uma escada de obsidiana, chego aos pés do Criador, para lhe dar em oferenda o poder da transformação. Sim: diante da divina impermanência, luto para conservar o instinto, para fixá-lo como uma escultura fluorescente. Ilumino-o com minha consciência e o retenho, até que estoure em uma nova obra divina, o universo infinito, labirinto incomensurável que desliza entre minhas garras, presa que escapa por entre meus dentes, pegadas que se pagam como um perfume sutil...

“E fico aqui, tentando unir todos os segundos uns aos outros, deter o fluxo do tempo. Isso é o inferno: o amor total pela obra divina que se esvai. Ele é o artista invisível, impensável, impalpável, intocável.. Eu sou o outro artista: fixo, invariável, obscuro, opaco, denso. Tocha que arde eternamente com um fogo imóvel. Sou quem quer engolir essa eternidade, essa glória imponderável, cravá-la no centro do meu ventre e pari-la como um pântano que se esgarça para ejetar o talo em cuja ponta se abrirá o lótus onde brilha o diamante. Assim, eu, dilacerando minhas tripas, quero ser a Virgem suprema que parirá Deus e o imobilizará em uma cruz para que fique eternamente aqui, comigo, sempre, sem mudança, permanente permanência.”



de O Caminho do Tarot, Ed. Chave, 2016

(Lido por Octavio Rosário para o encontro do dia 14/06)





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Homens não choram

Espiral, de Geovani Martins

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz