Portas da Cidade, por Camilla Agostini
Muitos morros no Rio de
Janeiro viraram cidade. Modos de vida rurais emaranhados numa confusão de
vielas, escadas, becos, fiações irregulares, uma arquitetura caótica onde um
dia antes foi mata. A vegetação nas proximidades serve de refúgio para
criminosos e sem-tetos. Há locais em rochedos e ranchos improvisados que servem
de abrigos temporários para figuras como Tião Espiga, ilustre desconhecido da
história de Copacabana, um catador de papelão da década de 1950.
Lembrado por vizinhos,
passava os dias com seus trapos a juntar papelão pelas ruas desse bairro
badalado da zona sul. Era como aquelas criaturas monocromáticas que vagam
silenciosamente pelo cotidiano, no vai e vem das calçadas da cidade. No fim da
tarde, se recolhia em um abrigo rochoso, fazia um fogo e aquecia algum
alimento; era também ali onde dormia. Conta a lembrança de uma vizinha, que seu
pai a ameaçava, dizendo que chamaria Tião Espiga com seu saco para leva-la
embora quando fazia muita bagunça. Tião Espiga era a encarnação do medo nas
memórias de vizinhos. Um homem solitário, sem recursos, era ao mesmo tempo
deslocado da sociedade e seguia perambulando por ela.
Na vizinhança da minha
casa, quase todos os dias encontro com um jovem desconhecido, com um ferimento
que o aleijou de um olho. É um jovem forte, com a marca do envolvimento no
crime. Isso é o que contam sobre a sua mazela, porque pessoas como ele são
sempre suspeitas. Raramente pensam que um moço forte, negro, que vive na rua
como ele, teria sofrido de uma doença mal assistida, mas sim vítima de uma
relação com o crime, é o que dizem. Fato é que o jovem caolho passa seus dias
desesperançoso, sentado na porta de um banco, sempre encolhido, às vezes
pedindo em voz baixa algum dinheiro, como se não quisesse incomodar ou chamar a
atenção.
Essas figuras
esquecidas, quase sombras das cidades, têm histórias, memórias e um amanhã, até
que a morte chegue. Como uma senhora, muito magra e muito idosa que, com seus
cabelos grisalhos e desorganizados, frequentemente perambulava pelas ruas do
Flamengo. Certa vez a vi recusar veementemente dez reais que uma mulher tentava
lhe dar. Tempos atrás a vi caminhando em minha direção pela calçada. Ela me
olhou e perguntou se eu tinha dinheiro para um café. Foi uma pequena emoção ter
aquele personagem do bairro que você acompanha, de repente, se dirigindo a
você. Pela primeira vez tive a chance de falar com ela.
Lembrei-me do episódio
com a moça que tentou oferecer os dez reais e entreguei uma nota de cinco. Ela
falou que era muito. Eu insisti, disse que ela poderia tomar outro café depois.
Ela seguiu argumentando que um café custava R$ 1,30 e só precisava de dois
reais. Por fim, a convenci a levar os cinco dizendo que não tinha uma nota de
dois. Seguimos andando em direções opostas.
Quando voltava para casa,
longo depois, ela estava encolhida, sentada em um degrau de uma pequena escada
de acesso à lateral de um prédio da esquina. Parei alguns instantes, olhei do
outro lado da rua e tomei coragem. Atravessei a rua, olhei mais um pouco,
discretamente, entrei em uma loja de doces ao lado, procurando algo para oferecer
que lhe fosse conveniente, pois não tinha os dentes. Escolhi duas pequenas
bananadas macias.
Por fim, me aproximei,
acocorei ao seu lado e perguntei se o café foi bom, oferecendo as bananadas.
Ela respondeu que tinha acabado de almoçar e café só tomava de manhã. Fez questão
de mostrar o copo de feijão que usou, guardado numa sacola. Não quis as
bananadas, mas começamos a conversar mesmo assim. Era muito simpática, com a fala
solta, fácil. Contou que se chamava Marluce, nascida em Angra dos Reis. Veio
para o Rio aos 20 anos e estava no Flamengo a 70. Falou seu ano de nascimento:
1920, e sua idade: 91. Uma matemática perto da perfeição. Repetia muitas coisas
e fatos, parecia bem lúcida.
Casou-se no Rio aos 24
anos com um homem natural de Pernambuco. Casaram-se na praça XV, só no cartório,
não teve festa. Aos 27 anos o marido a deixou, foi para Pernambuco em resposta
a um telegrama que recebeu da mãe. Ele nunca mais voltou e nem deu notícias.
Quando perguntei se voltou a se casar, foi enfática “Não. Eu não sou viúva!” Seu
único filho lhe deixou três netos e faleceu aos 40 ou 41 anos, não entendi bem.
A nora morava com os dois netos no Turano e o outro estava na Bahia. Marluce morava
em Bonsucesso, mas ficava na casa de uma senhora na rua Barão de Icaraí, onde
trabalhou como cozinheira por muito tempo. Agora não podia mais cozinhar, mas
lavava a louça, molhava as plantas, era o que podia.
Apesar dos anos lembrava-se
das quantias que pagou ou recebeu no passado. O valor do casamento no cartório,
repetiu muitas vezes, quanto recebia no trabalho e muitos outros. Disse que
“hoje é real, mas na época eram réis” e tentou comparar quanto ela ganhava e
quanto as cozinheiras atualmente recebem. Ela considerou que hoje em dia é muito,
mas que falta emprego. “Antigamente chovia emprego nos jornais para domésticas,
hoje não tem mais. Tem para outros trabalhos, mas para esse não”, explicou.
Cheguei a comentar a lei que estavam aprovando sobre o trabalho das domésticas.
A certa altura da
conversa, com minhas pernas em câimbra por estar agachada, perguntei se podia
me sentar ao seu lado, no degrau da escada. Ela disse que estava de saída,
então continuamos a conversar um pouco mais, e eu tentando manter minhas pernas
vivas, ainda de cócoras. Disse que sempre a via pelo bairro e que ela me fazia lembrar
uma pessoa querida; ela voltou a dizer que precisava ir. Muito prazer, dona
Marluce.
Depois desse dia, nunca
mais a vi passar. Como se ela tivesse revelado sua história e, por fim,
desencantado. Ou, como uma andarilha descoberta que resolveu mudar de
vizinhança para não ser importunada. Fato é que esses seres de luz e de
sombras, que transitam solitários pelas matas, becos ou entre multidões nas
calçadas, levam consigo muito mais do que silêncio, esquecimento e abandono.
São como portas fechadas, que nunca se sabe o que podem revelar.
(Conto vencedor do encontro de 25/09/2018)
Camilla Agostini, carioca, arqueóloga e historiadora.
Parabéns, Camilla! Adorei!
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