O sonho de Luzia, por Guilherme Preger
Imagino Luzia fugindo de algum
sapiens macho, violento, estuprador.
Ela está há dias numa caminhada de
fuga solitária, extenuante. Ela abandona a Zona da Mata, onde o bote de algum
animal ou o abraço forçado do macho (os machos são inimigos) é sempre iminente.
Ela alcança a região do sertão, de suas veredas e rios, da mata rasteira do
cerrado, onde pode ver de longe a aproximação do inimigo. Ela deve ter pensado:
viver é muito perigoso.
É quase noite, mas ainda há
luminosidade. Ela procura um rio onde possa beber água e limpar suas feridas.
Há em seu corpo frágil rasgos da vegetação espinhosa, cortes de pedras afiadas,
cicatrizes das lutas pela sobrevivência. Ela vê o regato do rio colorido pelo
sangue de suas veias e de sua menstruação.
A noite é deslumbrantemente
estrelada no céu límpido do planalto americano. Ela ouve o cicio das folhas e o
zumbido dos insetos. Ela ouve um choro de criança, mas que deve vir de sua
própria imaginação. Então ela deita e dorme. Não há tempo para divagações
românticas. Mas há o sonho. O sonho não é do sapiens, o sonho é da vida. A
primeira bactéria sonhou.
E é um sonho incrível, que
estremece seu corpo sobre a pedra.
Ela sonha montanhas rochosas
subindo verticalmente pelo cerrado, animais velozes, monstruosos e tonitruantes
atravessando as veredas entre as rochas, pássaros enormes com suas asas grandes
descendo sobre planaltos desérticos.
Ela sonha uma mulher negra como
ela, segurando seu filho, como ela uma vez segurou o seu. O pequeno está morto
em seus braços. A mulher quer enterrar o filho, mas machos surdos não lhe dão
atenção. Não há mais terra para sepultar a criança, há apenas pedra, pedra e
pedra.
A aflição da mulher do sonho faz o
corpo de Luzia se remexer sobre o rochedo em que dorme. Como se lúcida, Luzia
vê a mulher do sonho se aproximar de uma fogueira com a criança em seus braços.
Luzia quer impedir a mulher de se
aproximar do fogo, mas logo percebe que é inútil. É como se ela estivesse tão
próxima, mas tão distante.
E diante de sua impotência em
ajudar a mulher do sonho, Luzia tem uma reação de pavor.
Então a mulher do sonho projeta o
corpo da criança no fogo. Luzia sente o calor das chamas esquentar seu próprio
corpo como um acesso de raiva. E então acorda. Ela está coberta de suor.
Ela percebe que faz calor, uma
quentura esquisita para a noite. A pedra em que dorme está aquecida. O que lhe
causa estranheza, pois o sertão noturno da chapada costuma ser gelado.
O calor é um sinal de perigo. A
noite está quieta, mas há muita luminosidade em volta. Uma luminosidade inesperada.
Inteiramente desperta e desesperada
como uma mulher que perdeu o filho, ela sobe uma pequena escarpa para conseguir
uma visão melhor do horizonte.
E o que ela viu de cima foi o
cerrado sem fim pegando fogo, queimando as folhas, incendiando as árvores,
calcinando a terra e tornando rubra a noite.
E sentiu vergonha de achar belo o
espetáculo de labaredas. Ao ver a fumaça subindo e se desfazendo no ar noturno,
imagino que ela teria pensado: a lembrança desta noite se perderá na memória
como a fumaça se desfaz no ar.
E concluiria, com todo saber de sua
ofegante e longa jornada: a luz aqui não ilumina, a luz apenas é o que nos traz
um pavor tão grande como esses planaltos vastos, violentos e raivosos.
(Conto apresentado no encontro de 04/09/2018 baseado no mote de João do Rio, Os Exorcismos)
Guilherme Preger é escritor e nasceu há 10.000 anos atrás.
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