O homem ao lado - Maiara Líbano
O homem ao lado
Fim de semana de visitar meus
pais. Visito-os uma vez por mês. Vivo no Rio de Janeiro, e eles em Nova
Friburgo, no interior do estado. Saí de casa há 12 anos. Terminei minha
graduação, agora continuo minha pesquisa no mestrado, em Literatura, cultura e
contemporaneidade na Puc.
Chego na rodoviária, desta vez
com alguns minutos de antecedência. Um tempo para um café e um cigarro. Chega o
ônibus. Apanho o bilhete.
Meu assento, sempre o mesmo.
Número 2. De acordo com uma pesquisa que li, que não interessa reproduzir aqui,
trata-se do assento mais seguro, de menor possibilidade de acidentes fatais.
Mas ele tem uma contrapartida
fundamental, um grande ponto negativo: o acompanhante do assento. Mesmo com
poucos passageiros, sempre haverá alguém no assento 1. Além de ser janela, e
próximo à saída tem aquele espaço largo pra esticar as pernas. Já estava
acostumado à companhia de pessoas idosas. Será que é reservado a elas, ou
apenas uma coincidência?
Entro no ônibus, e naturalmente,
meu acompanhante de viagem já está ali a postos. Deve ter seus 35 anos, não
muito mais velho que eu. Percebo pela indumentária tratar-se de um funcionário
de uma empresa de telecomunicações. Cumprimento-o com gentileza e discrição,
apenas levantando as sobrancelhas.
Observo, antes de tudo, o
fundamental. O divisor de assentos. Estava levantado. Aquilo que distinguia o
meu lugar do seu lugar ainda não estava posto. Ao mesmo tempo que me sento, abaixo
o divisor. Agora, reflito sobre quem tem o direito de apoiar o braço. Eu? Já
que fui quem o abaixou, consagrando sua existência? Ou ele que chegou antes, e
por ingenuidade ainda não o tinha feito? Sem resposta para isso ocupo apenas
uma metade, a metade mais próxima do banco, deixando a parte da frente livre.
Assim permaneço por alguns segundos. Até que me dou conta da estapafúrdia
solução que havia dado ao impasse. Pois, de que serve um divisor quando ele é
coabitado por dois indivíduos? Por meritocracia, mantenho meu braço, agora por
inteiro no divisor.
Percebendo que ele vai me dirigir
a palavra me enrubesço, já tentando organizar, em alguns milésimos, uns
argumentos para ficar com o divisor. Mas..
- Engraçado né, sexta-feira e a
rodoviária nem tá assim muito cheia.
- Pois é.
- Tá indo pra Friburgo?
Penso. O que ele verdadeiramente
quer com essa pergunta? Eu poderia dizer: "Não. Estou aqui de sacanagem,
porque sou joselito. Antes do ônibus partir eu vou descer." Mas enfim,
guardo pra mim e digo:
- Sim. Estou indo.
- Ah lá é muito bom. Gosto muito.
Ok. Eu não dei continuidade e o
ônibus arrancou. Agora cada um na sua. Espero. Aproveito a deixa e abro um
livro. Percebo de rabo de olho que ele está se contorcendo pra ver a capa do
livro. Sem saber muito o porquê abaixo pra dificultar a intromissão do vizinho.
- Oi Aninha. É Zilda. Olha, o
ônibus saiu agora há pouco. Estamos chegando na ponte. Se o sinal falhar é
porque tá na ponte, tá?! Thiago passou aí? Ué, passou não? Esse menino.. Vem cá
fala com sua mãe que tô chegando umas sete horas. Isso se não tiver muito
engarrafado. Alô? Alô? Aninha?
Deus do céu, como fala alto essa
senhora.
- Ih, começou o trânsito na
ponte. Chato né?
- Pois é.
- Será que o ônibus vai fazer
aquela parada em Alcântara ainda?
- Não sei.
- Tomara que não né?
- Tomara.
Meu Deus, será que ele não
percebe que eu estou monossilábico? Mas é tão evidente. Essa incapacidade de
ler o desinteresse alheio é uma das maiores manifestações da chatice, doença
seríssima que a indústria farmacêutica ainda não deu a devida atenção.
-
'Please don't stop the music! Music! Please don't.' Alô? Ahn. Tá mãe, que saco! Tá na ponte
ainda. Tchau!
Adolescentes não fazem idéia do
quanto são repugnantes. Por essas e por outras não quero ser pai. Pelo menos
nem tão cedo.
E agora é a vez do meu caro
vizinho voltar a me perturbar. Desta vez abre um pacote de chips e dá mordidas
intensas fazendo aquele barulho formidável. Mas que ônibus...por céus.
- Aceita?
- Não obrigado.
Respondo sem tirar os olhos do
livro, o qual me esforço para me concentrar, nesse microcosmo dos horrores.
- Antigamente eles deixavam um
cartaz aqui de quando foi a última dedetização do ônibus. Ó, nem tem mais.
- Pois é.
- Safadeza né? Também,
monopólio..aí os caras fazem o que quiser né não?
- Pois é.
Sinto que meu estoque de
"pois é" está acabando.
- Fala de quê esse livro?
Típica pergunta de quem não lê.
Mas e agora, páro pra responder sendo legal com ele e desleal comigo? Ou não?
Por uns dez segundos tento
destrinchar a personalidade do inconveniente. Há uma afoita necessidade de
conversar. Possibilidades: pode ser uma manifestação de uma síndrome de pânico
que tem ao entrar em veículos automotores. Pode ser gay, e estar altamente
interessado em mim (prefiro essa opção, sou um medíocre). Pode ser carência,
porque há uma elocução sem fim.
Em todas as situações ele puxa o
assunto, e em todas eu não dou corda. Eu não olho pra ele nem mesmo quando me
pergunta algo. E ele não desiste. Sinto que devo ter dó. E emprestar-lhe os
ouvidos, quase que por uma obrigação social. Mas ao mesmo tempo é injusto esse
pensamento, é injusto comigo. Ele pode ser um sádico. Sim, ele deve ser um
sádico.
Talvez eu tenha demorado um pouco
refletindo. Pois quando olho de volta, ele já está com um pacote de biscoito
doce nas mãos, daqueles recheado de chocolate. Daqueles que eu gosto.
- Agora é a vez do doce! Quer?
Pega um aí?
- Não obrigado.
Salivei. Mas aceitar seria um
erro, eu ficaria em débito com o chato. Ele poderia exigir que eu ouvisse suas
ladainhas até o fim da viagem. E eu teria mais pudor ainda em evitá-lo.
- Você que sabe, quando quiser
está aqui. Mas e o livro?
- É um livro de contos.
- Ah sim. Tipo crônica?
- Tipo.
- Tipo parábola?
- Tipo.
- Tipo Paulo Coelho?
- Tipo.
Independente de qualquer coisa,
repetir "tipo" é minha melhor saída.
- Saquei. Eu lia essas coisas
quando estava no segundo grau. Só que era obrigado. Rs, Rs, Rs.
Veja bem, isso não foi um recurso
de texto. O camarada pronunciou em voz alta, para mim, "rs rs rs".
Não aguentei e ri, desta vez um riso de verdade. A partir daí passei a perceber
uma certa inocência no mala. O comportamento dele tem algo de infantil. Nessa
coisa de negar com tanta veemência aquilo que não quer, ou seja, ficar em
silêncio. Não tem um condicionamento às regras sociais, um suposto bom
comportamento, pois, como as crianças, ele não as reconhece como tais. E
fundamentalmente há uma presentificação em todo seu comportamento. Um aqui e
agora sem hesitações. Me lembro de Walter Benjamin e do que ele fala sobre o
tempo kairós. Por uns minutos invejei o homem. Como será existir no mundo desta
forma? Há muito menos incômodo nas coisas, certamente. Depois pensei, se ele me
oferecer o biscoito de novo eu até topo. Até que ele interrompe esses
pensamentos de novo.
- Ih olha lá, já deu sete e meia
e não estamos nem em Itaboraí ainda. Não falei? Vai chegar lá pra umas oito e
meia.
- Pois é.
- Não quer mesmo um biscoito não?
Tô comendo tudo pô, pega aí? Comigo não tem esse negócio de cerimônia não viu.
- Ô meu camarada, já que você
insiste! Obrigado. Esse biscoito é muito bom.
- Pega mais.
- Só dois então.
- Pega mais.
- Valeu, obrigado mesmo, dois
está de bom tamanho.
Como eu previa foi uma roubada
ter aceitado o biscoito. Ele narra uma série de ladainhas. Meu celular estava
descarregado e eu sentindo falta da sua maior qualidade: companhia pra quando
se está só, e solidão pra quando se está acompanhado.
Já completou 40 minutos de fala
ininterrupta. Foi uma estratégia me oferecer o biscoito, é claro. Como pude
cair nessa? Decidi ignorá-lo por completo. Não havia o que fazer.
Durante todo esse tempo mantinha
ainda meu olhar no livro. Mas estava totalmente incapaz de decifrar as
palavras, as letras eram um emaranhado de tinta. E ainda assim fui passando as
páginas, para me manter ocupado. Para ele me perceber ocupado. De nada
adiantava. Pois falava. Falava.
Por sorte vasculhando minha
mochila à procura de qualquer coisa, encontro meu iPod. Foi minha salvação.
Prontamente, ponho os fones de ouvido.
Agora finalmente no meu universo,
sem invasão, ouvindo Nina Simone, penso nos encontros. E o que a pequena porção
de um dia pode nos reservar. Penso nos lugares. Tão perto, tão longe. Ao meu
lado este homem (que agora já dorme), mas poderia ser outra pessoa. Tantas
poderiam ser. Lembro da Cristina, e de tudo que vivemos. Eu não sei se ela faz
ideia do quanto sinto falta dela. Eu quero ela. Ainda. Cinco anos, que não sei
foi encontro ou desencontro. Ou se foi só passatempo. Talvez jamais tenhamos
nos conhecido. Porque uma discussão boba não pode acabar com um encontro
verdadeiro. Me recuso a acreditar nisso. Nunca voltei pra entender, ela também
não. Faz mais sentido que nunca tenha sido nada.
Estar com alguém é o impossível.
A porção da solidão será sempre maior.
Está chegando o meu aniversário.
E com ele, o que sempre me vem à cabeça: a contradição de envelhecer. Maior é
nossa capacidade de observar, o outro e a nós mesmos. Mas muito maior é o vão
que nos separa. Maiores são os bloqueios, as mágoas, os medos, mais difícil de
entrar. A gente vai se represando com os anos. Pra um encontro é preciso
atravessar oceanos. Vejo da janela da frente que começa a chover. Na serra tudo
é mais bonito quando chove.
É quando sinto um peso em meu
ombro direito. É a cabeça trepidante do vizinho.
Hoje é este homem ao meu lado.
Amanhã espero que seja Cristina.
Conto escrito para o encontro de 24/03/2015
Maiara Libano não é precisa, é
contraditória.
Impressionante como o texto cresce exponencialmente perto do final. Não esperava esse nível de desencadeamento poético, em principal a partir de "Estar com alguém é o impossível". Muitíssimo bom.
ResponderExcluir(Marcio Couto aqui rs)
Este comentário foi removido pelo autor.
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