Uma canção do rei - Daniel Russell Ribas
Uma canção do rei
A preparação é cuidadosa. Penteia cuidadosamente os
cabelos pintados de um forte preto artificial. Tenta com gel e esforço manter a
ilusão de liso, sem muito sucesso. Quando finaliza os retoques no visual, acaba
se perdendo nos detalhes dissonantes. O nariz é maior e adunco, herança do avô
árabe. Os olhos são grandes e abertos. As pintas na bochecha que lembra bolhas.
A voz está rouca, devido aos cigarros. De longe, ainda acha que engana. A
semelhança resiste, apesar de o tempo trabalhar no distanciamento entre
original e cópia. Enfim, o terno branco e camisa azul se destacam, anulando as
eventuais comparações faciais.
Hoje, ele cantará em um bar perto do Morro da
Conceição. É a Zona Portuária da cidade, num ponto em particular em que o odor
da maresia se mistura com a poeira provinda das obras na região. Teme pela
roupa, que inevitavelmente ficará com uma tonalidade marrom. “Tomara que o
cachê dê para a lavanderia”, pensou. Em seguida, se perguntou se ainda havia
comida em casa. Não importava. O terno, uma de suas ferramentas de trabalho,
era mais importante. Poderia sempre comer sanduíche fiado por alguns dias na
padaria embaixo de seu pequeno apartamento em Marechal Hermes.
Quando termina de cuidar do cabelo, pega uma
garrafinha de líquido bucal e gargareja. Olha para fora do banheiro imundo e
fedorento. O bar está começando a encher. A noite caiu há pouco e uma mistura
de moradores com pessoas saindo do trabalho para tomar uma cervejinha antes de
rumar para seus lares está à mesa. No canto esquerdo no degrau de acesso, na
entrada para o interior e perto do balcão de metal e vidro engordurado, um
pedestal com microfone. Mais à frente, colado na parede externa, uma cópia em
preto e branco que anuncia a atração: “Carlos Roberto, o melhor sósia do Rei”.
Humilde, não achava a afirmação verdadeira, mas sabia que precisava de uma
propaganda boa para atrair interesse.
Antes, Carlos era imitador por hobby. Começou na
década de 80, quando cantava em festas na comunidade. Logo, as mães dos amigos
apontaram semelhanças entre ele e o Rei, o que o divertiu. Aos poucos, ganhou
público e, em cinco anos, se profissionalizou. Seu emprego diário era catador
de lixo, cantar era apenas um extra. Alcançou uma fama tímida e chegou a
aparecer num telejornal, com seu uniforme de gari e recitando um ou dois versos
de músicas conhecidas do astro que imitava.
Beirando os 50 anos, foi demitido. O motivo foi por
falta ao trabalho. Tinha ido acompanhar o filho de um amigo em uma passeata por
melhores condições de trabalho. Houve tumulto e não conseguiu proteger o jovem,
que apanhou bastante. Carlos protestou, mas o spray de pimenta nos olhos o
silenciou. Tentou se justificar quando voltou ao galpão, mas sem sucesso. O
pior é que o garoto foi preso. Sentiu-se culpado.
Apesar disso, aquela certa fama que um dia
desfrutara permanecia em alguma capacidade. Recortou uma foto sua de uma
reportagem antiga, imprimiu uns folhetos promovendo seu show e conseguia
algumas apresentações. Além disso, fazia bicos de entregador e outras tarefas
onde morava. Era querido pela vizinhança, o que ajudava. Fome ainda não tinha
passado. A dor era outra.
Dedicou boa parte de sua vida aos outros. À família,
fossem os pais doentes ou o irmão viciado, aos amigos e aos vizinhos, ele era a
pessoa que tinha a disposição, o ombro amigo e uma palavra pra trocar. Sempre
acreditou que quem fazia o bem, recebia o mesmo. Mantinha a crença. No entanto,
o peso na alma se tornava cada vez maior. Perdeu seus entes queridos para as
mudanças da vida, permanentes ou locais. A disposição se cansara, os ombros
arquearam e só tinha força na voz para cantar o sustento. Não sentia
indiferença. Apenas exaustão.
Não se casou ou teve filhos. Se teve, nunca um bateu
à sua porta. Após a morte de sua família, ficou sozinho. Vivia para seu
trabalho, a música e os outros. A prisão do filho do compadre foi a gota da
água. Conhecia o menino desde que nasceu. Acompanhou seu crescimento, deu
conselhos, foi como um tio para ele. Quando se tornou gari também, Carlos
esteve ao seu lado, guiando-o. Ainda assim, o sobrinho tinha ideias, queria
mais, uma vida melhor. Carlos tentou botar bom senso na cabeça dele, em vão.
Finalmente, não restou alternativa, exceto evitar que se machucasse. Assim, foi
com ele na passeata, com o coração na mão. Quando tudo terminou, estava caído,
chorando. Até hoje, não sabe se foi pelo efeito do spray nos olhos ou por ter
deixado o garoto ser preso. O compadre, mesmo triste, afirmou que não tinha
sido culpa dele, que Carlos tentou ajudar e etc. Mas ele não se sentia assim.
Tinha perdido o único elo mais perto da afeição paternal que sempre sonhou em
disponibilizar para um filho.
Sua vida passou nos olhos cansados que o encaravam
no espelho manchado do banheiro. “Ô, Rei, sua plateia espera”, gritou num tom
jocoso o barrigudo balconista de meia idade e pele oleosa. Carlos suspirou e
foi para o microfone. Percebeu que teria que desviar o ombro quando quisesse
entrar no ombro por qualquer motivo. Tudo bem, pensou, já se apresentou em
lugares piores. Não lembrava qual, mas era desimportante. Fez um meneio com a
cabeça. O dono do bar o olhou sem emoção, passou o braço na testa, pegou o cd e
pôs no tocador. Os primeiros acordes surgiram. Era a hora.
Como sua voz ficou rouca devido aos cigarros,
cantava baixinho junto com a voz do original. Uma vez, alguém comentou, em
brincadeira: “Dois Robertos pelo preço de um!” Ficou ofendido na hora. Passou a
primeira faixa, segunda e terceira. As pessoas papeavam, olhavam para ele, se
desinteressavam. A noite seguiu e o cansaço de Carlos aumentava. Afinal, como a
vida mudara desse jeito? Sem perceber ou mandar aviso. Antes, as pessoas
sorriem e gostavam quando cantava. Agora, embora sem a mesma força, buscava
aquele calor, mas em vão. A conversa ao redor era duro concorrente para seu repertório.
Queria sair, mas precisava de dinheiro para limpar o terno.
Um casal gordo se levantou e começou a dançar. O
burburinho parou por um instante para observar aquela dupla fora dos padrões
estéticos fazendo um tímido dois para lá e dois para cá. “Foi com essa música
que a gente deu o primeiro beijo”, o homem falou. A mulher sorriu. “Canta mais,
Rei!”, emendou. Carlos sorriu e cantou com o sentimento de uma luz que não se
apaga.
Conto escrito para o encontro de 21/ 07/ 2015
Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura”
(http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal.
Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio” (http://multiconto.blogspot.com.br/),
em parceria com o poeta Henrique Santos. Organizou as coletâneas “Para
Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim
que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito
e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez,
pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de
usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da
Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente &
Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do
conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio).
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