Amar é uma merda - André Salviano
Amar é uma merda
Quando
pisou no cocô de cachorro que estava estacionado no meio da calçada imaginou
que andava sem sorte. Olhou para o pulso esquerdo: Oito horas e trinta e dois
minutos. Atrasado. De novo. Arrastou a sola do tênis direito no meio-fio,
sentiu um pouco do cheiro desagradável, esperou o sinal fechar, atravessou.
Quando pegou o telefone do bolso notou que tinham três chamadas perdidas.
Nenhuma dela. Duas do trabalho. Ponto de ônibus cheio, empurra-empurra pra
subir, discussão entre passageiro e motorista sobre a demora, sem lugar vazio.
Em pé, com a mochila apoiada em apenas um dos ombros, o esquerdo, já que o
direito tem uma bursite que não suporta peso por muito tempo, pensou no livro
que ia lá dentro. As viagens de ônibus eram pra ler, por isso não tinha carro,
e hoje essa demora fez com que o mesmo viesse lotado, geralmente não era assim.
A mulher que estava sentada a sua frente tinha seios volumosos, parte deles à
mostra num decote ousado. Tentava não olhar praqueles peitos insinuantes, mas
eram hipnóticos, ela notou e jogou as madeixas alisadas pra frente. Fim do
espetáculo. Começou a se distrair olhando pela janela, vez em quando um ou
outro carro emparelhava, tentava descobrir como seria a vida de quem dirigia: a
gorda num Corsa anos 90, segurava firme o volante, pescoço tenso, deve estar na
provisória ainda; o baixinho no Vectra filmado e rebaixado, devia ser algum
favelado, maior calor e o cara com a janela aberta e som nas alturas; a morena
gostosa, roupa de malhar, apenas a mão direita no volante, a esquerda na perna
grossa, com os vidros do seu Honda Civic todos fechados, auto-confiante, certamente
ouvia sertanejo universitário. Alguém pediu licença pra passar pelo corredor
apertado, ia descer no próximo ponto. Teve que se espremer pra frente tomando
cuidado pra não roçar na peituda que estava sentada, não queria ser confundindo
com algum tipo de tarado de coletivo. No trabalho o de sempre: esporro pelo
atraso, café, bunda na cadeira digitando números e fórmulas no Excel, mais
café, mais chá de cadeira, almoço, caminhada pra desgastar o PF de peão e fezinha
na Mega Sena, café, mais Excel, lanche, contar piadas, falar da rodada do
Campeonato Brasileiro, bater ponto e ouvir “Vê se não chega atrasado amanhã”,
responde cantando “Amanhã, vai ser outro dia”.
“Tudo que acontece uma vez poderá nunca
mais acontecer, mas tudo o que acontece duas vezes, certamente acontecerá uma
terceira.” Lembrou dessa célebre frase do livro O Alquimista, quando na manhã
seguinte pisou novamente num cocô de cachorro, mesmo tendo mudado de calçada.
Não olhou para o pulso esquerdo, pois tinha certeza que dessa vez não estava
atrasado. Só leu Paulo Coelho uma vez na vida, aos dezesseis, o suficiente pra
não querer mais saber do “bruxo”, mas e se o filho da puta estiver certo, será
que amanhã pisarei outra vez num cocô de cachorro? – pensou alto.
No
trabalho, comentou sobre o ocorrido com o colega da baia ao lado, que resmungou
dizendo que sempre achara o Paulo Coelho um mau caráter, e que era fã do
Raulzito. Passou a tarde pensando no cocô, e se realmente o universo
conspirasse, não que sua vontade era pisar em cocôs de cachorro todos os dias,
e ter que parar num posto de gasolina pra lavar o solado na bica que fica ao
lado da bomba de encher pneus, pra não empestear a sala do trabalho, que divide
com outras quatro pessoas. Não era isso, mas é que ela ligava todos os dias,
mesmo quando brigavam, não deixava de ligar, nem que fosse pra xingá-lo. Mas aí
ontem não ligou, hoje, já passa das três da tarde e nem uma mensagem sequer.
Depois
de escovar os dentes pra dormir, olhou para o rádio-relógio: vinte e três horas
e quarenta e sete minutos. Conferiu o celular, nada de ligação nem de mensagem
dela. Amanhã iria esquadrinhar cada pedaço daquela calçada, estava decidido a
não pisar mais em merda nenhuma de cachorro algum. Suspirou e pegou no sono.
Conto escrito
para o encontro de 04/ 08/ 2015
André
Salviano é formado em Letras pela UFRJ. Já participou de algumas antologias,
prosa e poesia, mídia impressa e eletrônica, como o Prêmio UFF de Literatura
2009, categoria conto, e o e-book Não é só por 20 contos (http://www.skoob.com.br/files/ebooks/20-contos.pdf).
É um dos fundadores do blogue Confraria dos Trouxas (confrariadostrouxas.com.br), onde escreve todas
as terças desde 2010. Admirador da alma feminina. Torcedor do Flamengo. Sempre
que pode bate ponto no Maraca. Gosta de suco de melancia e do pôr do sol no
Arpoador. Não dispensa um chopinho regado a bom papo. Mora em Laranjeiras, mas
vive na Lapa.
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