Memórias - Jussara Oliveira



Memórias


Segurava a foto entre o indicador e o polegar olhando fixamente. Ora fixava no olhar do jovem que a estampava ora em seus dedos enrugados.
- Amor, você deveria escaneá-la e colocar num desse porta-retratos 3D que estão fazendo tanto sucesso por aí. Você sabe que com o tempo, por mais que você a conserve bem, ela vai se desfazer.
- São 30 anos me dizendo isso, e mais trinta que vou repetir. Não posso. Isso vai tirar de mim essa... materialidade. Poder tocar em seu rosto ainda que de papel. Holograma não tem isso.
- Roberto, eu sei o quanto você o amava, o quanto toda essa história foi trágica. Sabe o quanto admiro esse amor seu por ele. Mas... Ah deixa pra lá. - Mariana sorriu e o olhou com carinho.
Os dois se entreolharam com cumplicidade. Enquanto caía mais uma lágrima do olho de Roberto.
  

6:00 AM.

O rádio relógio começou a tocar.


I want to break free
I want to break free
I want to break free from your lies
You're so self satisfied I don't need you
I've got to break free
God knows, God knows I want to break free.


Roberto acorda, chutando as cobertas e xingando o fato de ter que acordar tão cedo para ir trabalhar. Seus pés ainda estavam doloridos pelo trabalho no dia anterior. Segunda semana que teve que cobrir uma falta. Olha no celular e tem uma mensagem de Rafael no WhatsApp:
- Preciso falar com você urgente. Me avisa a hora que começar seu horário de almoço. 


Na hora combinada lá estava ele, na frente do café que Rafael gostava de ir, infeliz por ainda estar com o uniforme de garçom. Todo mundo olhava pra ele quando o viam em pé. Observava a porta quando ele entrou, parecia bem agitado e abatido e o procurando com pressa com os olhos.
- Ah achei você.
- Rafa, ta tudo bem?
- Não, não tá, preciso te contar uma coisa, tá preparado?
- Não fala assim comigo que já fico preocupado. O que houve? Você não quer terminar de novo né? Sabe que eu te amo.
- Acabei de fugir do hospital. - Sussurrou baixinho.
- Como assim?
- Passei mal ontem, estava de novo com enxaqueca. Fizeram uns exames e disseram que tenho um aneurisma. Queriam fazer uma cirurgia, falar com a meu pai, mas eu não deixei.
- Mas isso não tem que tratar? Rafa você não pode fazer isso.
- Você também? Achei que poderia confiar em você. Sabe que foi assim que minha mãe morreu! - Levantou subitamente e correu para fora.
- Rafa, não!!!


3:46 AM.

- Mariana, tem certeza? Ele não passou aí, não falou com você?
- Não. Nem imaginava o que estava passando com ele, ele não me disse.
- Nenhuma pista? Vocês são tão amigos...
- Nadinha, você sabe como ele é fechado. Mas vamos esperar até amanhã, descansa. Você precisa.


6:00 AM.

O Rádio relógio ligou com um locutor falando:
- Ainda sem notícias da identidade do garoto encontrado na praça da República hoje de madrugada. Caso saibam do desaparecimento de um rapaz que aparenta ter de 16 a 18 anos, cabelos pretos e curtos, pele morena, 1,75 de altura, calça jeans e camiseta preta, favor ligar para nossa central. A polícia investiga a possibilidade de roubo seguido de morte, mas não deram maiores detalhes sobre a causa da morte. Em breve mais informações.


22:00 PM

- Seu dia foi longo, ainda bem que te deram essa folga. Você sabe que não vão aliviar pra você de novo, né?
- Mari, muito obrigada por tudo. Até agora não consigo entender. Por que ele fugiu? Se estava com tanto medo de morrer, não devia se enfiar por aí no meio do centro sozinho. O médico até avisou a ele que com a cirurgia ia ficar tudo bem. Que tinham descoberto a tempo.
- Você sabe como ele sofreu vendo a mãe no hospital. Sabe... acho que a gente, às vezes, escolhe como ou quando prefere morrer.


Conto escrito para o encontro de 04/ 08/ 2015




Jussara Oliveira é analista de sistemas de formação, feminista por necessidade, inquieta por natureza. Participa da equipe coordenação do blog coletivo http://blogueirasfeministas.com/ e do coletivo http://www.bisides.com/. Às vezes, também compartilha rascunhos em https://exerciciosliterarios.wordpress.com/.

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