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Mostrando postagens de 2019

Distancia de resgate, por Samanta Schweblin

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Ele ligou,   com urgência, para o veterinário, alguns vizinhos vieram, todos preocupados correndo daqui para lá, eu voltei desesperadamente para casa, peguei David ,que ainda dormia no berço, e me tranquei no quarto, na cama, com ele nos   braços ,para rezar. Rezei como uma   louca, rezei como se eu nunca tivesse rezado na minha vida. Você pensará porque eu não corri para a emergencia   em vez de me trancar na sala, mas às vezes não há tempo para confirmar o desastre. O que for que o cavalo tivesse bebido , meu David também o pegara, e se o cavalo estivesse morrendo, não havia chance para ele. Eu sabia com toda a clareza, porque já tinha ouvido e visto muitas coisas nesta cidade, eu tinha algumas horas, talvez minutos, para encontrar uma solução que não fosse esperar meia hora por um médico rural que nem chegaria   a tempo. Eu precisava de alguém para salvar a vida do meu filho, a qualquer custo Eu espio novamente Nina, que agora dá alguns passos em direção à piscina. - Às veze

A Condessa Sangrenta, de Alejandra Pizarnik

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A Condessa Sangrenta, de Alejandra Pizarnik. Ilustrações de Santiago Caruso. Editora Tordesilhas, 2011  (Mote lido por Maíra Fernandes para o encontro de 12/11/2019) 

O silêncio, por Amílcar Bettega

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Por uma espécie de abulia inata, ele foi renegando a palavra. Entregava-a aos outros em generosas porções de silêncio, nas quais eles, os outros, serviam-se com avidez e um instinto de se sobrevivência que, para ele, estava próximo do comportamento dos animais. Secretamente regozijava-se ao vê-los, os outros, embrutecidos e rasteiros, tão distantes do destino nobre que desde o início já sentia desenhado para ele. Mas não desconfiava que o regozijo, o qual – num esforço sincero para anular qualquer sentimento de superioridade - ele repudiava, podia ser uma forma de defesa e que na base de tudo estava a sua incapacidade para exercer a palavra, para se fazer ouvir. Ou melhor, para expressar o que queria que fosse ouvido. Não, não era uma incapacidade, ele pensou, já tarde demais. Mas mesmo que já fosse tarde ele continuou a pensar e convenceu-se de que uma sucessão de ausências concorrera para produzir aquele caráter particular que agora lhe pesava tanto. Ausência de coragem, de v

Dresden, por Camilla Agostini

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Conheci um sujeito das bandas de lá. Ele contava que quando criança esperavam os tios virem visitar. Era quando traziam presentes da Alemanha Ocidental. Ficara radiante, já adolescente, com a chegada do jeans em uma dessas visitas. Aos dezenove anos tentou fugir, atravessando a fronteira pela floresta. Como muitos alemães, guardava memórias antigas do tempo da guerra, mesmo aquelas herdadas ou as ouvidas quando esteve preso, por ousar ter outra escolha àquela que lhe oferecia o seu país. Contava que a primeira coisa que os russos faziam no tempo da guerra, ao invadirem uma cidade, era retirar o sino da igreja. Disse isso como se fosse evidente, acompanhado de um silêncio imperativo. O tempo, regulado pelas badaladas, não estaria mais nas mãos de Deus, era esse o recado? Contava também que os casais, quando os homens partiam para a guerra na Rússia, lavavam os pés um do outro, em um ritual de despedida e de afeto, pois não sabiam quando, ou mesmo se, iriam se reencontrar. Conheci t

Matadouro 5, por Kurt Vonnegut

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Tudo isso aconteceu, mais ou menos. As partes da guerra, pelo menos, são bem verdadeiras. Um cara que eu conhecia realmente foi morto em Dresden por pegar uma chaleira que não lhe pertencia. Outro cara que eu conhecia realmente ameaçou contratar assassinos profissionais para matar seus inimigos pessoais depois da guerra. E assim por diante. Eu mudei todos os nomes. Eu realmente voltei a Dresden com dinheiro da fundação Guggenheim (que Deus a tenha) em 1967. A cidade parecia com Dayton, em Ohio, mas com mais espaços abertos do que Dayton. Deve haver toneladas de farinha de ossos humanos enterradas no solo. Voltei lá com um velho companheiro de armas, Bernard V. O'Hare. Fizemos amizade com um motorista de táxi que nos levou ao matadouro onde havíamos ficado presos durante a noite como prisioneiros de guerra. O nome dele era Gerhard Müller. Ele nos contou que foi prisioneiro dos americanos por um tempo. Nós lhe perguntamos como era viver no comunismo, e ele disse que foi terrív

Um sinal no espaço (As Cosmicômicas), por Italo Calvino

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Situado na zona externa da Via Láctea, o Sol leva cerca de duzentos anos para realizar uma revolução completa da Galáxia. Exatamente, este é o tempo que leva, nada menos, disse Qfwfq ; eu uma vez passando fiz um sinal no espaço, de propósito, para poder vir reencontrá-lo duzentos milhões de anos depois, quando viéssemos a passar por ali na volta seguinte. Um sinal como? É difícil dizer porque quando lhes digo sinal pensarão imediatamente em alguma coisa que se distinga de outra coisa, e ali não havia nada que pudesse se distinguir-se de nada; pensarão logo num sinal marcado com um utensílio qualquer ou mesmo com as mãos; em seguida, que os utensílios e as mãos se vão mas que o sinal permanece; mas naquele tempo ainda não havia utensílios, nem mesmo as mãos, ou dentes, ou narizes, tudo isso que veio em seguida, mas muito tempo depois. Quanto à forma que se dá ao sinal, acharão não ser problema porque, seja qual for a forma que tenha, basta que um sinal sirva de sinal, quer dizer,

Natureza Morta, por José Fontenele

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Mesmo que as sagradas escrituras esclareçam o contrário, a mulher nasceu foi no subterrâneo. Certo ponto chateou-se. Deixou para trás as fissuras do Hades e decidiu subir de mansinho à superfície. A ganância pelo horizonte fez com que a feminina encontrasse um rapaz adormecido em um jardim frutífero e animais nada peçonhentos. Experiente na arte da sobrevivência, a mulher localizou rapidamente os sexos e as formas entre eles e resolveu permanecer como cobaia no jardim primaveril dando-se por desconhecida dos fatos; como se nascesse naquele instante sem memória de suas impurezas ou desmazelas. O momento era favorável à nova moradora: Adão procurava alguém que representasse a função dele de ser mais inepto entre os habitantes do jardim; e deus não queria perder discípulos, afinal se eliminasse a criatura recém-chegada abortaria pelo menos metade de seus atuais e futuros fiéis. Ela sorriu de forma indiferente, fez-se tonta e desajeitada, e recebeu o nome de Eva. Nós, os outros, em desl

Viagem sentimental ao Japão , por Paula Bajer Fernandes

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Entrei em um avião duas vezes. Na primeira, não olhei para fora da janela. Perdi a oportunidade de ver as nuvens de perto. Na segunda, foi diferente. Fui. Fui e voltei. Viajar é um movimento que ainda não consigo fazer espontaneamente. Meu corpo não gosta de ficar longe de casa. Só que me sinto atraída pelo movimento imaginário de mudar. Para outro continente, por exemplo. Outro continente de mim. Deslocamentos do espírito. Ou deslocamentos mentais.   Enfrentei. Parti. Não queria tanta distância. As coisas não acontecem como a gente espera. Tudo começou quando me senti estrangeira em minha própria casa. Eu não pertencia. Sempre foi assim. Nunca pertenci. E me fechei nos estudos, no computador, nos games, nas leituras, nos relatos de viagens. Minhas leituras me transportaram. Viagem ao centro da terra. Volta ao mundo em 80 dias. Viagens de Gulliver. Encontrei as viagens de Gulliver. O livro me inspirou. Fiquei com vontade de ir para lugares imaginários. De conhec

Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, de Gloria Anzaldúa

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21 de maio de 1980 Queridas mulheres de cor, companheiras no escrever Sento-me aqui, nua ao sol, máquina de escrever sobre as pernas, procurando imaginá-las. Mulher negra, junto a uma escrivaninha no quinto andar de algum prédio em Nova Iorque. Sentada em uma varanda, no sul do Texas, uma chicana abana os mosquitos e o ar quente, tentando reacender as chamas latentes da escrita. Mulher índia, caminhando para a escola ou trabalho, lamentando a falta de tempo para tecer a escrita em sua vida. Asiático-americana, lésbica, mãe solteira, arrastada em todas as direções por crianças, amante ou ex-marido, e a escrita. Não é fácil escrever esta carta. Começou como um poema, um longo poema. Tentei transformá-la em um ensaio, mas o resultado ficou áspero, frio. Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudo-intelectualizadas que a lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita. Como começar novamente? Como alcançar a intimidade e imediatez que quero? De que forma? Uma carta, claro

A Nova Cosmogonia, de Stanislaw Lem

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Acheropoulos se serve do seguinte modelo explicativo: quando em um nutriente de ágar assentamos colônias de bactérias, logo no início é possível ver a diferença entre um ágar de partida (o 'natural') e aquelas colônias. Porém, no decorrer do tempo, os processos vitais das bactérias alteram o meio ambiente do ágar, introduzindo nele algumas substâncias e absorvendo outras, e assim a composição dos nutrientes, a sua acidez, a sua consistência, sofre alterações. E quando, em consequência dessas alterações, o ágar - presenteado com os novos quimismos - provocar o surgimento de novas espécies de bactérias, alteradas e não parecidas com as gerações genitoras, tais novas espécies serão resultado de um 'jogo bioquímico' que transcorria ao mesmo tempo entre todas as colônias e a base de nutrientes. Essas espécies tardias de bactérias não teriam surgido se as espécies anteriores não tivessem transformado o meio ambiente; portanto, as tardias são resultado do próprio jogo. As colô

Nenhum Olhar, José Luís Peixoto

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Na última noite do verão, como fazia sempre nas últimas noites de cada estação desde os dezoito anos, José foi à casa da prostituta cega. Prostituta, foi uma palavra que um viajante por ali deixou e que as pessoas que moravam na vila aproveita ram para baptizar a prostituta cega. Era uma palavra estranha e difícil, que se enrolava na boca, que os habitantes da vila só utilizavam quando se referiam à prostituta cega, mas era uma palavra muito adequada, porque não era a palavra puta. A prostituta cega não era puta, era uma mulher, triste por ser cega, que fazia favores por não poder fazer mais nada. A mãe dela tinha sido igual a ela, a avó dela tinha sido igual a ela, mas dizia-se que a bisavó tinha sido uma baronesa caprichosa que abandonara a filha entre umas balsas. Abandonara-a por ser menina. E ao vê-la, ainda suja do seu sangue; ao vê-la, desgostosa por não ser o menino que imaginara e a quem fornecera um enxoval completo comprado em Lisboa; ao vê-la, pela primeira vez, disse

Matilde, por João Mattos

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Agradecendo a Wanderson Alves pela cessão de uma de suas inspiradoras fotos A casa parece chorar, manchas esverdeadas nos muros, rachaduras nas paredes, um cheiro de mofo por toda a parte. A empregada nova – a cada mês tem uma, impossível guardar o nome de ajudantes tão efêmeras – me conduz até o quarto. Sentada na cadeira de rodas, Matilde cantarola uma canção de sua terra: "Debaixo da oliveira / Não se pode namorar / A folha é miudinha / Deixa passar o luar". Quando me vê – sem me reconhecer absolutamente – pergunta se vou levá-la de volta a Miranda do Douro, onde seus pais a esperam, já não quer ficar presa no castelo da princesa. Olho ao redor, os aposentos da princesa – a princesa que Matilde foi um dia, uma lembrança que se apagou na bruma de sua memória: a romântica cama, com o dossel já meio rasgado e pilastras torneadas que já conheceram dias melhores, as cortinas de seda tisnadas pela maresia, as arandelas de cristal trincadas. Há quase cinco década

Tragam suas próprias bombas, por Guilherme Preger

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Havia escolhido o bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, porque era um dos poucos onde ainda restavam muitas lan houses . Para o trabalho de LIS, lan house era fundamental. Gostava de uma que se chamava PIRATAS INSANOS, na Av Cesário de Melo. Diziam que a PIRATAS INSANOS pertencia à milícia, o que era um ponto a favor. Se a PF tentasse rastrear o acesso, iriam ter que enfrentar as milícias da região que dominavam todas as lojas de internet, assim como toda a rede de fibra óptica local. Além do mais, LIS gostava de se sentir “dentro da barriga do monstro”, no interior da fortaleza do inimigo, traficando informação. Tráfico, aliás, era uma palavra proibida naquele lugar. Milicianos costumavam “apagar” os traficantes locais bem como os usuários de qualquer droga, com exceção de cachaça, cerveja e rivotril.   Foi direto em sua máquina preferida, em que havia colocado um adesivo do System of Down , e que sabia que era a mais potente, com melhor processador. Colocou seus fones de ou

Sonata em Auschwitz, por Luize Valente

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Eram trinta barracões que funcionavam como depósitos de tudo o que vinha nos trens e seria enviado para a Alemanha. Os nazistas puseram fogo neles quando abandonaram o campo, dias antes da libertação soviética. Diz-se que arderam por cinco dias. Uns poucos resistiram. Num deles, os russos encontraram oito toneladas de cabelo humano que seriam enviadas a fabricantes de tecidos, cordas, colchões e o que mais se fabricasse com os fios. As alemãs usavam perucas feitas de cabelos das tranças de adolescentes judias. Tudo que li revira minha mente e meu estômago. Adele viveu ali. Os nazistas explodiram os crematórios, mas o cheiro dos mortos consumiu as entranhas de Adele. Os mortos vivem em seus silêncios. (Editora Record, 2017).  (Mote para o encontro de 11/06/2019)

A Natureza das coisas, por Marilia Passos

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Sentada no batente da janela, ela olha a baía de Guanabara. Queria viver com a mesma desenvoltura daqueles homens que não têm medo de cair. Talvez eles se segurem nas opiniões tão firmes que possuem sobre tudo, ou talvez sejam destemidos mesmo, ou talvez nunca tenham vivido um fracasso. Ou talvez só sejam homens. Como Chico, o amigo de infância que ganhava em tudo. “Meninos são mais fortes”, ele dizia. E ela então quis ser homem, até a tarde em que Saulo, o faxineiro da escola de dança, pediu para ver a xoxota dela. Luísa achou aquilo engraçado: ninguém nunca lhe pedira para ver a xoxota. Ele repetia a pergunta como um apelo, o mesmo tom que ela usava quando implorava um brinquedo: “Compra, mãe, compra! Por favor!”.  — Não, Saulo, não vou mostrar xoxota nenhuma. Balançava a cabeça do mesmo jeito que a mãe.  Esfregando o chão, ele insistiu uma, duas, dez vezes. Ela não saía do lado dele, observando aquele homem gordo se rastejar sobre seus pés pelo reflexo do espelho. Ficou um b

Coisas na cabeça de um guri, por Camilla Agostini

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Tomar um brinquedo nas mãos, pousá-lo logo à frente e vê-lo mover. Se a casa de bonecas da prima abre portas e janelas, deixando as mãos apertadas entrarem, seus pequenos balanços em formato de carrossel giram e a lembrança voa para o dia no parque de diversões. Luzes coloridas e brinquedos emocionantes, assustadores com uma dose de aventura. Montanha russa, trem fantasma, bate-bate. Esperava a chuva passar para que logo pudesse ir aos balanços da pracinha, enquanto giravam ali no chão da sala as cadeirinhas coloridas nas mãos do guri. A praça era o que restava depois da temporada do parque na localidade. Esse mesmo piá esteve um dia instigado em como tanta coisa podia parar dentro de uma garrafa de vidro. Olhava bem e desafiava o pensamento, imaginando a engenharia necessária para passar um boneco articulado de madeira pelo gargalo. Averiguava com as pontas dos dedos que não havia marcas na garrafa, a única entrada possível era a diminuta boca e insistia em uma resposta até cansar a