O silêncio, por Amílcar Bettega
Por uma espécie de abulia
inata, ele foi renegando a palavra. Entregava-a aos outros em generosas porções
de silêncio, nas quais eles, os outros, serviam-se com avidez e um instinto de
se sobrevivência que, para ele, estava próximo do comportamento dos animais.
Secretamente regozijava-se ao
vê-los, os outros, embrutecidos e rasteiros, tão distantes do destino nobre que
desde o início já sentia desenhado para ele. Mas não desconfiava que o
regozijo, o qual – num esforço sincero para anular qualquer sentimento de
superioridade - ele repudiava, podia ser uma forma de defesa e que na base de
tudo estava a sua incapacidade para exercer a palavra, para se fazer ouvir. Ou
melhor, para expressar o que queria que fosse ouvido.
Não, não era uma incapacidade,
ele pensou, já tarde demais.
Mas mesmo que já fosse tarde
ele continuou a pensar e convenceu-se de que uma sucessão de ausências
concorrera para produzir aquele caráter particular que agora lhe pesava tanto.
Ausência de coragem, de vitalidade, de vontade, de alegria, e também de uma
dose de malícia para perceber que desde o início tudo já estava em jogo, que
não podia haver nem haverá nunca idílio sem preço, e que este preço quase
sempre está além do que se pode pagar.
Há quem faça da palavra uma
arma; outros, um escudo. Com o silêncio é a mesma coisa, ele descobriu,
descobrindo ao mesmo tempo um instinto de sobrevivência latente que até então ignorava.
Apaixonou-se
por todas as formas de silêncio, e até explorou com talento as manifestações do
nada, do vazio, do branco, da ausência, da suspensão, da latência, do sono, da
falta de pensamento, da alienação, da inércia, do individualismo, da distração,
da errância, da brisa, da passividade, da contemplação, da neve, da melancolia,
da desistência, da incerteza, da esterilidade, do cansaço, da lentidão, da
inapetência, do entorpecimento, da preguiça, da tristeza, da indecisão, do
afastamento, da invisibilidade, da inexistência.
E claro,
existia a forma suprema do silêncio, talvez a única verdadeira, que o atraía
tanto quanto lhe causava medo, como tudo aliás que se ia apresentando a ele
naquele caminho que se recusava a aceitar como escolha sua.
E entendeu que
até então tudo fora preparação para o silêncio absoluto. Já desprezava
verdadeiramente a opinião alheia, estava ao mesmo tempo acima e abaixo dos
outros e de suas palavras.
Palavras
vazias!, chegou a pensar.
Mas uma
palavra, mesmo desprovida de sentido, não implicaria já uma renúncia ao vazio,
uma negação do silêncio? Pela primeira vez entendeu que eles, os outros, fugiam
também, que eram tão covardes quanto ele próprio. Ou melhor, que a coragem, se
existia, estava do seu lado, porque era ele que havia chegado mais próximo do
verdadeiro silêncio, do silêncio total.
Mas a
radicalidade deste silêncio absoluto trouxe-lhe um peso, uma consistência
material que o surpreendeu, não pela significação concreta deste sentimento que
experimentava pela primeira vez, mas pela reação que provocara: finalmente ele
descobrira a pulsão.
Já tarde
demais, ocorreu-lhe num relance de pensamento, que foi logo posto de lado,
rechaçado até com raiva e energia, pois estava ocupado demais em debater-se
contra aquilo que agora o cercava e que o asfixiava, que reduzia o espaço para
seus movimentos, os quais, em contrapartida, eram cada vez mais instintivos e
isentos de cálculo, como os de um animal enjaulado, ou ferido, ou simplesmente
doente, velho e à beira da morte.
Pequena
Prosa: Amílcar Bettega, Porto Alegre, Zouk, 2019. p. 57-9.
Amílcar Bettega, formado
em Engenharia Civil, é doutor em Letras. Autor dos livros "O voo da
trapezista" (Movimento/IEL, 1994), "Deixe o quarto como está"
(Companhia das Letras, 2002), vencedor do Prêmio Açorianos e menção honrosa do
Prémio Casa de Las Américas, em Cuba, "Os lados do círculo" (Companhia
das Letras, 2004), vencedor do Prêmio Portugal Telecom 2005 e
"Barreira" (Companhia das Letras, 2013). Seus livros estão publicados
em Portugal, Espanha e Bulgária. Tem contos publicados em revistas e antologias
em países como França, Itália, EUA, Suécia, Luxemburgo e Romênia. Participou de
vários programas de residências internacionais, tais como International Writing
Program, da University of Iowa, em Iowa (EUA), em 2010, Château de Lavigny, em
Lavigny (Suíça), em 2009, Ledig House International Writers’ Residence, em Omi
(EUA), em 1999, entre outros. Como tradutor, publicou, entre outros, "125
contos de Maupassant" (Companhia das Letras, 2009).
Fonte: Wikipedia
Mote
lido pelo próprio autor para o encontro do dia 29 de outubro de 2019
Espetacular. Os participantes do Clube devem escrever um conto a partir do texto apresentado?
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