Mote do encontro 28/04



Texto lido por Márcio Couto

Fluxo-Floema



Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte. Calma. Não é assim? Uma vez um menininho foi colher crisântemos perto da fonte, numa manhã de sol. Crisântemos? É, esses polpudos amarelos. Perto da fonte havia um rio escuro, dentro do rio havia um bicho medonho. Aí o menininho viu um crisântemo partido, falou ai o pobrezinho está se quebrando todo, ai caiu dentro da fonte, ai vai andando pro rio, ai ai ai caiu no rio, eu vou rezar, ele vem até a margem, aí eu pego ele. Acontece que o bicho medonho estava espiando e pensou oi, o menininho vai pegar o crisântemo, oi que bom vai cair dentro da fonte, oi ainda não caiu, oi vem andando pela margem do rio, oi que bom vou matar a minha fome, oi é agora, eu vou rezar e o menininho vem pra minha boca. Oi veio. Mastigo, mastigo. Mas pensa, se você é o bicho medonho só tem que esperar menininhos nas margens do teu rio e devorá-los, se você é o crisântemo polpudo e amarelo só pode esperar ser colhido, se você é o meninho tem que ir sempre à procura do crisântemo e correr o risco. De ser devorado. Não há salvação.Calma, vai chupando o teu pirulito. Eu queria ser filho de um tubo. No dia dos pais eu comprava uma fita vermelha, dava um laço no tubo e diria: meu tubo, você é bom porque não me incomoda, você é bom porque é apenas um tubo e posso te olhar bem descansado, posso urinar minha urina cristalina dentro de ti e repetir como um possesso: meu tubo, meu querido tubo, posso até te enfiar lá dentro que não dirás nada. As doces, primaveris, encantadoras manhãs do campo. As ervinhas, as graminhas, os carrapichos, o sol dourado, e os humanos cagando e mijando sobre as ervinhas, as graminhas, os carrapichos e sob o sol dourado. Meu filho, não seja assim, fale um pouco comigo, eu quero tanto que você fale comigo, você vê, meu filho, eu preciso escrever, eu só sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentros são complicadíssimas mas são... as coisas de dentro. E ai de quem reclamar.

HILST, Hilda. Fluxo-Floema. São Paulo. Editora Perspectiva, 1970.


Hilda Hilst nasceu em 21 de abril de 1930. Entre 1955 e 1962, publicou diversas obras de poesia, entre elas Balada do festival e Ode fragmentária. Em 1999, ganhou uma página na Internet inteiramente dedicada à exposição de seu trabalho (http://www.hildahilst.cjb.net). Dentre as diversas obras da autora, destacam-se A obscena senhora D, de 1982, adaptada para o teatro em 1993 e traduzida para o francês em 1997; Bufólicas, poesias satíricas lançadas em 1992; Fluxo-floema, seu primeiro livro de ficção, publicado em 1970; e a trilogia obscena composta pelos títulos O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d'escárnio. Textos grotescos e Cartas de um sedutor, publicada entre 1990 e 1991. Além do Prêmio Moinho Santista pelo conjunto da obra poética, recebido em 2002, Hilda Hilst foi agraciada com o Prêmio Anchieta de Teatro pela peça O verdugo, em 1969; com o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) na categoria "Melhor livro do ano" em 1977, por Ficções; com o Grande Prêmio da Crítica pelo conjunto da obra, também da APCA, em 1981; e ainda com o Prêmio Jabuti por Rútilo nada, em 1994, entre outros. Hilda Hilst faleceu em 4 de fevereiro de 2004, em Campinas, de falência múltipla de órgãos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz