Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo, de Gloria Anzaldúa

21 de maio de 1980
Queridas mulheres de cor, companheiras no escrever Sento-me aqui, nua ao sol, máquina de escrever sobre as pernas, procurando imaginá-las. Mulher negra, junto a uma escrivaninha no quinto andar de algum prédio em Nova Iorque. Sentada em uma varanda, no sul do Texas, uma chicana abana os mosquitos e o ar quente, tentando reacender as chamas latentes da escrita. Mulher índia, caminhando para a escola ou trabalho, lamentando a falta de tempo para tecer a escrita em sua vida. Asiático-americana, lésbica, mãe solteira, arrastada em todas as direções por crianças, amante ou ex-marido, e a escrita.
Não é fácil escrever esta carta. Começou como um poema, um longo poema. Tentei transformá-la em um ensaio, mas o resultado ficou áspero, frio. Ainda não desaprendi as tolices esotéricas e pseudo-intelectualizadas que a lavagem cerebral da escola forçou em minha escrita.
Como começar novamente? Como alcançar a intimidade e imediatez que quero? De que forma? Uma carta, claro.
Minhas queridas hermanas, os perigos que enfrentamos como mulheres de cor não são os mesmos das mulheres brancas, embora tenhamos muito em comum. Não temos muito a perder — nunca tivemos nenhum privilégio. Gostaria de chamar os perigos de “obstáculos”, mas isto seria uma mentira. Não podemos transcender os perigos, não podemos ultrapassá-los. Nós devemos atravessá-los e não esperar a repetição da performance.
É improvável que tenhamos amigos nos postos da alta literatura. A mulher de cor iniciante é invisível no mundo dominante dos homens brancos e no mundo feminista das mulheres brancas, apesar de que, neste último, isto esteja gradualmente mudando. A lésbica de cor não é somente invisível, ela não existe. Nosso discurso também não é ouvido. Nós falamos em línguas, como os proscritos e os loucos.
Porque os olhos brancos não querem nos conhecer, eles não se preocupam em aprender nossa língua, a língua que nos reflete, a nossa cultura, o nosso espírito. As escolas que freqüentamos, ou não freqüentamos, não nos ensinaram a escrever, nem nos deram a certeza de que estávamos corretas em usar nossa linguagem marcada pela classe e pela etnia. Eu, por exemplo, me tornei conhecedora e especialista em inglês, para irritar, para desafiar os professores arrogantes e racistas que pensavam que todas as crianças chicanas eram estúpidas e sujas. E o espanhol não era ensinado na escola elementar. E o espanhol não foi exigido na escola secundária. E mesmo que agora escreva poemas em espanhol, como em inglês, me sinto roubada de minha língua nativa.
Quem nos deu permissão para praticar o ato de escrever? Por que escrever parece tão artificial para mim? Eu faço qualquer coisa para adiar este ato — esvazio o lixo, atendo o telefone. Uma voz é recorrente em mim: Quem sou eu, uma pobre chicanita do fim do mundo, para pensar que poderia escrever? Como foi que me atrevi a tornar-me escritora enquanto me agachava nas plantações de tomate, curvando-me sob o sol escaldante, entorpecida numa letargia animal pelo calor, mãos inchadas e calejadas, inadequadas para segurar a pena?
Como é difícil para nós pensar que podemos escolher tornar-nos escritoras, muito mais sentir e acreditar que podemos! O que temos para contribuir, para dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Não nos dizem a nossa classe, a nossa cultura e também o homem branco, que escrever não é para mulheres como nós?
O homem branco diz: Talvez se rasparem o moreno de suas faces. Talvez se branquearem seus ossos. Parem de falar em línguas, parem de escrever com a mão esquerda. Não cultivem suas peles coloridas, nem suas línguas de fogo se quiserem prosperar em um mundo destro.
“O homem, como os outros animais, tem medo e é repelido pelo que ele não entende, e uma simples diferença é capaz de conotar algo maligno.”
Penso, sim, talvez se formos à universidade. Talvez se nos tornarmos mulheres-homens ou tão classe média quanto pudermos. Talvez se deixarmos de amar as mulheres sejamos dignas de ter alguma coisa para dizer que valha a pena. Nos convencem que devemos cultivar a arte pela arte. Reverenciarmos o touro sagrado, a forma. Colocarmos molduras e metamolduras ao redor dos escritos. Nos mantermos distantes para ganhar o cobiçado título de “escritora literária” ou “escritora profissional”. Acima de tudo, não sermos simples, diretas ou rápidas.
(...)


(mote para dia 30/07/2019 lido por Vivian Pizzinga)



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