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Mostrando postagens de maio, 2019

A Natureza das coisas, por Marilia Passos

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Sentada no batente da janela, ela olha a baía de Guanabara. Queria viver com a mesma desenvoltura daqueles homens que não têm medo de cair. Talvez eles se segurem nas opiniões tão firmes que possuem sobre tudo, ou talvez sejam destemidos mesmo, ou talvez nunca tenham vivido um fracasso. Ou talvez só sejam homens. Como Chico, o amigo de infância que ganhava em tudo. “Meninos são mais fortes”, ele dizia. E ela então quis ser homem, até a tarde em que Saulo, o faxineiro da escola de dança, pediu para ver a xoxota dela. Luísa achou aquilo engraçado: ninguém nunca lhe pedira para ver a xoxota. Ele repetia a pergunta como um apelo, o mesmo tom que ela usava quando implorava um brinquedo: “Compra, mãe, compra! Por favor!”.  — Não, Saulo, não vou mostrar xoxota nenhuma. Balançava a cabeça do mesmo jeito que a mãe.  Esfregando o chão, ele insistiu uma, duas, dez vezes. Ela não saía do lado dele, observando aquele homem gordo se rastejar sobre seus pés pelo reflexo do espelho. Ficou um b

Coisas na cabeça de um guri, por Camilla Agostini

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Tomar um brinquedo nas mãos, pousá-lo logo à frente e vê-lo mover. Se a casa de bonecas da prima abre portas e janelas, deixando as mãos apertadas entrarem, seus pequenos balanços em formato de carrossel giram e a lembrança voa para o dia no parque de diversões. Luzes coloridas e brinquedos emocionantes, assustadores com uma dose de aventura. Montanha russa, trem fantasma, bate-bate. Esperava a chuva passar para que logo pudesse ir aos balanços da pracinha, enquanto giravam ali no chão da sala as cadeirinhas coloridas nas mãos do guri. A praça era o que restava depois da temporada do parque na localidade. Esse mesmo piá esteve um dia instigado em como tanta coisa podia parar dentro de uma garrafa de vidro. Olhava bem e desafiava o pensamento, imaginando a engenharia necessária para passar um boneco articulado de madeira pelo gargalo. Averiguava com as pontas dos dedos que não havia marcas na garrafa, a única entrada possível era a diminuta boca e insistia em uma resposta até cansar a

Enquanto os dentes, por Carlos Eduardo Pereira

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Havia muitas brincadeiras de garoto, guerra de amêndoa, golzinho, pipa, taco, rolimã, cuspe a distância, e Antônio era um desastre em todas elas. Mas em corrida de chapinha ele se destacava. Era o responsável por desenhar as pistas, reproduções dos circuitos que ele conhecia tão bem. Desenhava na calçada irregular, não exatamente como eram, mas simulando florestas e pontes, riscando o chão às vezes com tocos de giz, quase sempre com pedaços de tijolo. Tinha jeito para desenho e talento para atividades manuais em geral, era o que diziam. A mãe guardava as tampinhas das garrafas de cerveja ou do refrigerante de domingo e Antônio separava as mais lisinhas, as que não tinham sido deformadas pelo abridor, para usar nas competições. Com o tempo, desenvolveu técnicas para incrementar seus automóveis imaginários, testando materiais, derretendo cera de vela na parte de dentro das chapinhas, misturando tintas, cores as mais variadas, proporcionando estabilidade, e beleza, aos petelecos. Mas te

Aristeu, por João Mattos

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Aristeu, no primeiro dia de aula. Aristeu, companheiro de carteira escolar, com dificuldade de pegar no lápis. Para mim era fácil, vinha de uma casa de professora, tinha lápis de cor, papel e cartolina, giz de cera à vontade. "Mas essa gente é muito bronca", dizia minha mãe. E teve o dia de fazer a primeira cópia. A história de Oscar, seu barco e seu cãozinho. Da lousa para o caderno, capricho e atenção. Eu terminei, os colegas terminaram. Aristeu, com seus garranchos, nunca chegava. "Muito devagar, muito devagar!", censurou a professora. Aristeu ria, um riso sem graça. A casa de Aristeu era lá pra baixo, quase na beira do rio. Isso era recente, dois anos antes moravam na roça, no bairro dos Sete Fogão. Minha mãe corrigia: "Sete Fogões". Mas não tinha jeito não, o nome do lugar era Sete Fogão mesmo. Aristeu e as brincadeiras no pátio. E na volta da escola, passar pela praça, subir na mangueira, jogar pedras no laguinho dos peixes. Aristeu era danad