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O Novo Normal, por Guilherme Preger

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O Novo Normal Foi o momento de calmaria na pandemia e no pandemônio da vida. Diziam que estávamos no olho do furacão. Ou naquele momento em que o tsunami puxa a água do mar e a praia aumenta. Diziam que na Europa e na África já se formava uma onda gigantesca com a nova variante da peste. As pessoas não aguentavam mais tanta morte e tanto confinamento. O dia a dia havia se tornado pesado e agora as pessoas se lançavam às ruas como quem, depois de um mergulho profundo, sobe à tona em busca de ar. Por isso Vanessa foi fazer escova no cabelereiro.  O cabelo estava uma vassoura de piaçaba. Fazia mais de dois anos que Vanessa não ia ao cabelereiro. Ela tinha se afeiçoado àquela imagem de bruxa, com o cabelo desgrenhado. Aliás, estava lendo muita literatura de bruxa. As bruxas, na verdade, eram mulheres poderosas que sabiam usar as plantas para a cura e para aumentar o desejo sexual. De homens e de mulheres. Vanessa gostava de se ver como bruxa. Mas infelizmente, aquele cabelo revoltado não e

Escova, por Manoel de barros

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  Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto

A Máquina, por Adriana Falcão

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A Máquina Adriana Falcão Objetiva – 1999 Lá de onde Antônio vem é longe que só a gota. Longe que só a gota pra trás, o que é muito mais longe que só a gota do que longe que só a gota pros lados. Pois vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura que qualquer bicho alado derrota. Já vir de longe pra trás é vir de longe no tempo, lonjura que pra ficar desimpossível demora.  Lá, de onde Antônio vem, era tanta coisa acontecendo que nem sei se vai dar pra contar tudo. Tomara que ninguém se tome por esquecido, pois a história que aqui vai ser contada tem de todas um pedaço, mas tem também uns pedaços que ficaram perdidos no caminho do tempo que Antônio andou até aqui trazendo com ele essa história.  Era o tempo de Antônio. E lá o tempo passava diferente. Era uma coisa agora, com um pouco já era outra e logo depois não era mais essa. Era aquela. O tempo de Antônio passava rápido demais. É ali por volta do ano dois mil que começa a história do tempo de Antônio. Mas o tempo de Antôn

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

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Vamos comprar um poeta Afonso Cruz A escolha de um poeta No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que infelizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave á competitividade mais elementar. Na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento de barba. Gostei de um que era ligeiramente marreco, uma escoliose com uma curvatura oblonga. Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cindo nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço. Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas. O pai cumprimentou o vendedor com a cortesia destas ocasiões, há sempre uma grande solenidade, sacrali

Balão Cativo, por Pedro Nava

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Quando não olhava para a Charlotte Corday nem para a Princesa de Lamballe, quando não lia — suspendia as âncoras, alestava os cabos, levantava minhas velas e saía mar afora. Para isto bastava fechar os olhos e encostar aquele búzio no ouvido. Era uma fantástica e gigantesca concha univalve cuja espiral não se desenvolvia em torno de uma linha, mas como giro que partisse do flanco de um cilindro. Essa anomalia do molusco deixava por dentro tuba que emitia o som grave, penetrante, profundo e antigo — o mesmo das que eram usadas pelos tritões no mundo de outrora. Eu tomava e soprava largamente como quem procede aos encantamentos. Ao seu troante apelo, como que o mar suscitado se empolava feito se dele fosse nascer outra lua e, do torvelinho da espuma de olhos fugazes, surgiam, cantando, nereidas de ventres nacarados, de altos pentes incrustados de caramujos e de imensas nádegas opalescentes. Punha no ouvido e do côncavo da concha vinha aquele ruído de para-sempre, aquele sustenido nas alt

Minha visita ao doutor Steiner, por Frantz Kafka

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Minha visita ao Dr. Steiner. Uma mulher já está à espera (no segundo andar do Hotel Victoria, na Jungmannstrasse), mas urge para que eu a preceda. Aguardamos. A secretária chega e nos pede paciência. Dou uma olhadela para o corredor e o vejo. De pronto, ele se encaminha para nós com os braços semiabertos. A mulher explica que fui o primeiro a chegar. Sigo-o, portanto, rumo a sua sala. A sobrecasaca preta que ele usa em suas palestras noturnas e que parece ter sido lustrada (mas não foi: é apenas a pureza do preto que a faz cintilar) apresenta-se agora, à luz do dia (três horas da tarde), empoeirada e até mesmo manchada, sobretudo nas costas e nos ombros. Em sua sala, procuro demonstrar a humildade que não logro sentir procurando um lugar ridículo para pendurar meu chapéu; penduro-o num pequeno suporte de madeira que serve de apoio para amarrar as botas. Há uma mesa no centro da sala, sento-me de frente para a janela, ele, à esquerda da mesa. Sobre ela, alguns papéis com desenhos que le