A Máquina, por Adriana Falcão

A Máquina

Adriana Falcão

Objetiva – 1999


Lá de onde Antônio vem é longe que só a gota. Longe que só a gota pra trás, o que é muito mais longe que só a gota do que longe que só a gota pros lados. Pois vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura que qualquer bicho alado derrota. Já vir de longe pra trás é vir de longe no tempo, lonjura que pra ficar desimpossível demora. 

Lá, de onde Antônio vem, era tanta coisa acontecendo que nem sei se vai dar pra contar tudo. Tomara que ninguém se tome por esquecido, pois a história que aqui vai ser contada tem de todas um pedaço, mas tem também uns pedaços que ficaram perdidos no caminho do tempo que Antônio andou até aqui trazendo com ele essa história. 

Era o tempo de Antônio. E lá o tempo passava diferente. Era uma coisa agora, com um pouco já era outra e logo depois não era mais essa. Era aquela. O tempo de Antônio passava rápido demais. É ali por volta do ano dois mil que começa a história do tempo de Antônio. Mas o tempo de Antônio começou há mais tempo do que isso, vinte e tantos anos antes, quando Antônio veio ao mundo. Ou então ainda há mais tempo, bilhões de anos atrás, quando o mundo foi criado. 

Tudo era uma seca só. Não tinha terra, não tinha céu, não tinha bicho, não tinha gente. Aí Deus foi ficando meio enjoado e resolveu criar o mundo. Ele pensou assim, vê que besteira a minha, por que é que vai ficar tudo sem nada se eu posso inventar o que eu quiser? Então saiu inventando.

Primeiro ele inventou o céu, que era para ter onde morar. Mas como o céu tinha que ficar em cima de alguma coisa, ele inventou a terra para ficar embaixo. Então ele pensou, e a terra vai ficar com um céu em cima e não vai ficar com nada embaixo não, é? Daí ele foi e botou o inferno embaixo da terra. Ficou bem bonitinho aquele negócio assim azul em cima e aquele negócio assim vermelho embaixo.

No começo a terra só servia para isso. Para ficar embaixo do céu e em cima do inferno. Mas aí Deus pensou assim, agora, que tem a terra, eu tenho que inventar a vida. E no que inventou a vida já inventou a morte junto, pois tudo o que é vivo, morre.

(Mote lido por Walter Macedo para o encontro de 23/11/2021


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