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Mostrando postagens de 2021

O Novo Normal, por Guilherme Preger

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O Novo Normal Foi o momento de calmaria na pandemia e no pandemônio da vida. Diziam que estávamos no olho do furacão. Ou naquele momento em que o tsunami puxa a água do mar e a praia aumenta. Diziam que na Europa e na África já se formava uma onda gigantesca com a nova variante da peste. As pessoas não aguentavam mais tanta morte e tanto confinamento. O dia a dia havia se tornado pesado e agora as pessoas se lançavam às ruas como quem, depois de um mergulho profundo, sobe à tona em busca de ar. Por isso Vanessa foi fazer escova no cabelereiro.  O cabelo estava uma vassoura de piaçaba. Fazia mais de dois anos que Vanessa não ia ao cabelereiro. Ela tinha se afeiçoado àquela imagem de bruxa, com o cabelo desgrenhado. Aliás, estava lendo muita literatura de bruxa. As bruxas, na verdade, eram mulheres poderosas que sabiam usar as plantas para a cura e para aumentar o desejo sexual. De homens e de mulheres. Vanessa gostava de se ver como bruxa. Mas infelizmente, aquele cabelo revoltado não e

Escova, por Manoel de barros

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  Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terra escovando osso. No começo achei que aqueles homens não batiam bem. Porque ficavam ali sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi que aqueles homens eram arqueólogos. E que eles faziam o serviço de escovar osso por amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestígios de antigas civilizações que estariam enterrados por séculos naquele chão. Logo pensei de escovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eram conchas de clamores antigos. Eu queria ir atrás dos clamores antigos que estariam guardados dentro das palavras. Eu já sabia também que as palavras possuem no corpo muitas oralidades remontadas e muitas significâncias remontadas. Eu queria então escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. Para escutar os primeiros sons, mesmo que ainda bígrafos. Comecei a fazer isso sentado em minha escrivaninha. Passava horas inteiras, dias inteiros fechado no quarto

A Máquina, por Adriana Falcão

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A Máquina Adriana Falcão Objetiva – 1999 Lá de onde Antônio vem é longe que só a gota. Longe que só a gota pra trás, o que é muito mais longe que só a gota do que longe que só a gota pros lados. Pois vir de longe pros lados é vir de longe no espaço, lonjura que qualquer bicho alado derrota. Já vir de longe pra trás é vir de longe no tempo, lonjura que pra ficar desimpossível demora.  Lá, de onde Antônio vem, era tanta coisa acontecendo que nem sei se vai dar pra contar tudo. Tomara que ninguém se tome por esquecido, pois a história que aqui vai ser contada tem de todas um pedaço, mas tem também uns pedaços que ficaram perdidos no caminho do tempo que Antônio andou até aqui trazendo com ele essa história.  Era o tempo de Antônio. E lá o tempo passava diferente. Era uma coisa agora, com um pouco já era outra e logo depois não era mais essa. Era aquela. O tempo de Antônio passava rápido demais. É ali por volta do ano dois mil que começa a história do tempo de Antônio. Mas o tempo de Antôn

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

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Vamos comprar um poeta Afonso Cruz A escolha de um poeta No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que infelizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave á competitividade mais elementar. Na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento de barba. Gostei de um que era ligeiramente marreco, uma escoliose com uma curvatura oblonga. Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cindo nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço. Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas. O pai cumprimentou o vendedor com a cortesia destas ocasiões, há sempre uma grande solenidade, sacrali

Balão Cativo, por Pedro Nava

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Quando não olhava para a Charlotte Corday nem para a Princesa de Lamballe, quando não lia — suspendia as âncoras, alestava os cabos, levantava minhas velas e saía mar afora. Para isto bastava fechar os olhos e encostar aquele búzio no ouvido. Era uma fantástica e gigantesca concha univalve cuja espiral não se desenvolvia em torno de uma linha, mas como giro que partisse do flanco de um cilindro. Essa anomalia do molusco deixava por dentro tuba que emitia o som grave, penetrante, profundo e antigo — o mesmo das que eram usadas pelos tritões no mundo de outrora. Eu tomava e soprava largamente como quem procede aos encantamentos. Ao seu troante apelo, como que o mar suscitado se empolava feito se dele fosse nascer outra lua e, do torvelinho da espuma de olhos fugazes, surgiam, cantando, nereidas de ventres nacarados, de altos pentes incrustados de caramujos e de imensas nádegas opalescentes. Punha no ouvido e do côncavo da concha vinha aquele ruído de para-sempre, aquele sustenido nas alt

Minha visita ao doutor Steiner, por Frantz Kafka

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Minha visita ao Dr. Steiner. Uma mulher já está à espera (no segundo andar do Hotel Victoria, na Jungmannstrasse), mas urge para que eu a preceda. Aguardamos. A secretária chega e nos pede paciência. Dou uma olhadela para o corredor e o vejo. De pronto, ele se encaminha para nós com os braços semiabertos. A mulher explica que fui o primeiro a chegar. Sigo-o, portanto, rumo a sua sala. A sobrecasaca preta que ele usa em suas palestras noturnas e que parece ter sido lustrada (mas não foi: é apenas a pureza do preto que a faz cintilar) apresenta-se agora, à luz do dia (três horas da tarde), empoeirada e até mesmo manchada, sobretudo nas costas e nos ombros. Em sua sala, procuro demonstrar a humildade que não logro sentir procurando um lugar ridículo para pendurar meu chapéu; penduro-o num pequeno suporte de madeira que serve de apoio para amarrar as botas. Há uma mesa no centro da sala, sento-me de frente para a janela, ele, à esquerda da mesa. Sobre ela, alguns papéis com desenhos que le

Haxixe, por Walter Benjamin (mote)

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“Olhei para o relógio, eram oito da noite. Nas primeiras horas do dia seguinte, um telegrama urgente poderia estar na agência de meu banco em Berlim. Dentro de mim começam a alternar-se inquietação e desagrado; inquietação por ver-me às voltas, justo naquele momento, com um negócio, uma incumbência, e desagrado pela insistente demora do efeito. Pareceu-me que o mais sensato seria rumar imediatamente para o correio central, que, pelo que sabia, expedia telegramas até meia-noite. Dado o infalível tirocínio do meu homem de confiança, meu assentimento era decisão tomada. Entretanto, preocupava-me um pouco a possibilidade de que, caso o haxixe começasse a fazer efeito, eu pudesse esquecer a senha combinada. O melhor era não perder tempo. Enquanto descia a escada, procurava recordar a última vez em que havia tomado haxixe – isso fora vários meses antes – e aquela fome devoradora e insaciável que me viera mais tarde, no quarto. Pareceu-me prudente comprar um tablete de chocolate. Avistei ao l

Fábulas da Ciência, por Guilherme Preger (mote)

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A Imperatriz e a ciência hermafrodita O maior contraponto à perspectiva sexista no discurso científico setecentista foi a obra de Margaret Lucas Cavendish (1623-1673). Absoluta exceção no domínio predominantemente masculino da filosofia natural, a exilada duquesa de Newcastle criou aquela que é considerada a primeira utopia escrita por mulher, The Blazing World (1666) ou O Mundo Resplandecente 1 e que também é considerada uma obra pioneira de ficção científica, pois narra uma viagem a um mundo alternativo localizado no espaço sideral e que poderia ser atingido através do Polo Norte. Nesta história, uma jovem Dama ( a Young Lady ) é sequestrada por um apaixonado marinheiro que deseja levá-la à força para sua terra natal 2 . No entanto, uma violenta tempestade conduz o navio a um extravio pelo Polo Norte. Lá, após atravessar gigantescas colunas de gelo, que se assemelham às colunas de Hércules retratadas no frontispício do Novo Organon de Bacon, em meio ao mar gelado, o navio é

Discurso, por Thomas Bernhard (mote)

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Discurso por ocasião da outorga do Prêmio Nacional Austríaco de Literatura de 1968 (do livro “Meus prêmios” de Thomas Bernhard) Ilustre senhor ministro, ilustres presentes, Não há nada a louvar, nada a amaldiçoar, nada a condenar, mas muito há de ridículo; tudo é ridículo quando se pensa na morte.     Vai-se pela vida, perturbado, imperturbado, atravessa-se a cena, tudo é intercambiável, escolado em maior ou menor grau no Estado feito de adereços: um equívoco! Compreende-se: um povo sem noção de nada, um belo país — são pais mortos ou de uma conscienciosa inconsciência, gente simplória e vil, com a pobreza de suas necessidades... É tudo uma história pregressa altamente filosófica e insuportável. As épocas são imbecis; o demoníaco em nós, um cárcere pátrio permanente, no qual os elementos da burrice e da falta de consideração se transformaram em necessidade básica cotidiana. O Estado é uma construção condenada para todo o sempre ao fracasso; o povo, à infâmia e à fraqueza mental ininter

Rasteira, por Graciliano Ramos

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Rasteira, verdadeiro esporte nacional (Crônica de Graciliano Ramos publicada em 1922 no jornal O Índio, sob o pseudônimo de J. Calisto) Pensa-se em introduzir o futebol, nesta terra. É uma lembrança que, certamente, será bem recebida pelo público, que, de ordinário, adora as novidades. Vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita gente. Com exceção talvez de um ou outro tísico, completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma bola de borracha, vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha capaz de durar bem um mês. Pois quê! A cultura física é coisa que está entre nós inteiramente descurada. Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes em língua de preto, de cunho regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje. Além da inócua brincadeira de jogar sapatadas e de alguns cascudos e safanões sem valor que, de boa vontade, permutamos