Fábulas da Ciência, por Guilherme Preger (mote)

A Imperatriz e a ciência hermafrodita


O maior contraponto à perspectiva sexista no discurso científico setecentista foi a obra de Margaret Lucas Cavendish (1623-1673). Absoluta exceção no domínio predominantemente masculino da filosofia natural, a exilada duquesa de Newcastle criou aquela que é considerada a primeira utopia escrita por mulher, The Blazing World (1666) ou O Mundo Resplandecente1 e que também é considerada uma obra pioneira de ficção científica, pois narra uma viagem a um mundo alternativo localizado no espaço sideral e que poderia ser atingido através do Polo Norte. Nesta história, uma jovem Dama (a Young Lady) é sequestrada por um apaixonado marinheiro que deseja levá-la à força para sua terra natal2. No entanto, uma violenta tempestade conduz o navio a um extravio pelo Polo Norte. Lá, após atravessar gigantescas colunas de gelo, que se assemelham às colunas de Hércules retratadas no frontispício do Novo Organon de Bacon, em meio ao mar gelado, o navio é levado por fortíssimos ventos a atravessar um abismo. Nessa travessia, devido ao intenso frio, morrem todos os marinheiros (homens) e a dama ("em razão da luz de sua beleza, do calor de sua juventude e da proteção dos deuses") é a única sobrevivente. O navio é então é levado a um "outro Mundo", pois "é impossível voltear o orbe planetário partindo de um polo a outro, assim como nós fazemos de leste a oeste, porque os polos desse novo mundo, unindo-se aos do nosso, não permitem qualquer outro acesso que possibilite circundar o planeta dessa forma" (BALDO, 2014, p. 97)3. Este outro Mundo4 é adjacente à Terra, e possui seu próprio sol, mas não pode ser visto por causa do "fulgor do nosso sol". A partir daí a jovem dama é conduzida por ursos e raposas humanoides a atravessar mares desse novo mundo até uma ilha de nome Paraíso, onde o Imperador a conhece e, inebriado por sua beleza, a faz Imperatriz do Mundo Resplandecente. É então que a Imperatriz conhece os demais habitantes do Império, seres híbridos entre humanos e animais, incluindo vermes, peixes, aves e insetos5 e aprende também igualmente a estrutura social, monárquica e hierarquizada segundo estamentos6. No entanto, diferentemente de muitos outros relatos utópicos, nos quais os narradores-testemunhas se limitam a descrever os reinos que conheceram, em O Mundo Resplandecente, devido à sua condição excepcional de ser transformada em Imperatriz, a protagonista tem poderes de interferir no reino, e a sua primeira atitude é criar escolas e associações assemelhadas tanto à Casa de Salomão baconiana, quanto à Royal Society e distribuir os seres híbridos do novo mundo por essas de acordo com suas aptidões7.

Então a narrativa passa a ser tomada por diálogos entre a Imperatriz e os nobres do outro Mundo a respeito de seus conhecimentos científicos. Não apenas essas passagens adotam o formato dos diálogos platônicos, que como vimos, foi também usado por Bruno, Campanella, Galileu e muitos outros, mas inicia-se a discussão de diversos temas científicos. Neste caso, o aspecto dialogal do texto dá forma também ao embate polêmico e controverso de ideais díspares, a exemplo da obra abordada de Galileu Galilei, com o embate entre mundos.

1 Milene Cristina da Silva Baldo escreveu sua Dissertação de Mestrado (UNICAMP, 2014) com um estudo e com a tradução dessa obra. Sobre Cavendish, escreve Marilene Baldo: "A inglesa Margaret Lucas Cavendish (Colchester, 1623-1673) foi uma Duquesa, conhecida em sua época por seu caráter peculiar, o que lhe conferiu o apelido de Mad Madge, ou seja, Margaret louca. Tal caráter se refere tanto ao seu modo de vestir, marcado por extravagâncias em cores e formas (às vezes com o uso de vestuário similar ao masculino), quanto ao seu hábito de argumentar filosoficamente com homens e utilizar a própria assinatura em suas publicações, costume incomum até o século XVII" (BALDO, 2014, p.5).

2 A mesma Margaret teve a experiência do exílio forçado ao acompanhar a rainha deposta Henrietta em seu período em Paris, onde a escritora conheceu o seu futuro marido, o Duque William Cavendish, e travou conversas com René Descartes.

3 Esse início de narrativa é bastante similar ao início do já comentado Das Narrativas Verdadeiras, de Luciano Samósata, no qual uma tempestade e um vento forte conduzem o navio da tripulação a outro mundo, no caso, a lua. O escritor latino é uma referência explícita de Cavendish, pois é citado no Prefácio. Porém, algo que aproxima ainda mais essas obras é o caráter assumidamente ficcional e anti-mimético de suas narrativas, também afirmado pela autora no mesmo Prefácio.

4 Marilene Bardo sustenta que os dois mundos (o terreno e o resplandecente) são figurações dos Mundus Visibilis e Mundus Intellectualis, apresentados no frontispício de O Progresso do Conhecimento (The Advancement of Learning), de Francis Bacon, inscritos acima e abaixo da página. Assim, o Mundo Resplandecente seria uma alegoria do Mundo Intelectual, ou Mundo das Ideias (cf. BARDO, 2014, p. 59).

5 "Os demais cidadãos formavam o grupo dos homens híbridos, cujos corpos assemelhavam-se às mais diversas formas e aspectos de alguns animais como ursos, raposas, vermes, peixes, pássaros, moscas, formigas, aranhas, piolhos, símios, corvos, gralhas, papagaios, sátiros, gigantes e muitas outras (cf. BARDO, 2014, p 65)".

6 Apesar de sua vida audaciosa e de sua escrita transgressiva, Margaret Cavendish foi considerada politicamente conservadora, por ser entusiasta da monarquia e por ter uma concepção de que a melhor sociedade é aquela composta por estamentos bem definidos, na qual cada cidadão tem um lugar natural de acordo com seu saber específico. Essa posição, aliás, é compatível com a República platônica, também aristocrática e estamental.

7 "Por este raciocínio, a disposição ocorreria segundo a seguinte ordem: os ursos seriam filósofos experimentais; os pássaros, astrônomos; as moscas, os vermes e os peixes, filósofos naturais; os símios, alquimistas; as raposas, políticos; os sátiros, médicos galênicos; as aranhas e os piolhos, matemáticos e geômetras; as gralhas e os papagaios, oradores e lógicos e, por fim, os gigantes seriam arquitetos (cf. BARDO, 2014, p 66)".

Retirado de FÁBULAS DA CIÊNCIA: Discurso científico e Fabulação Especulativa, ed. GRAMMA, 2021. 

   

  (Mote lido por Daniela Ribeiro, para o encontro do dia 10/08/2021)





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