Haxixe, por Walter Benjamin (mote)

“Olhei para o relógio, eram oito da noite. Nas primeiras horas do dia seguinte, um telegrama urgente poderia estar na agência de meu banco em Berlim. Dentro de mim começam a alternar-se inquietação e desagrado; inquietação por ver-me às voltas, justo naquele momento, com um negócio, uma incumbência, e desagrado pela insistente demora do efeito. Pareceu-me que o mais sensato seria rumar imediatamente para o correio central, que, pelo que sabia, expedia telegramas até meia-noite. Dado o infalível tirocínio do meu homem de confiança, meu assentimento era decisão tomada.

Entretanto, preocupava-me um pouco a possibilidade de que, caso o haxixe começasse a fazer efeito, eu pudesse esquecer a senha combinada. O melhor era não perder tempo. Enquanto descia a escada, procurava recordar a última vez em que havia tomado haxixe – isso fora vários meses antes – e aquela fome devoradora e insaciável que me viera mais tarde, no quarto. Pareceu-me prudente comprar um tablete de chocolate. Avistei ao longe uma vitrina com caixas de bombons, folhas de estanho ofuscantes e bonitos bolos em camadas. Entrei pela loja e estaquei, surpreso. Não havia ninguém à vista. Mais ainda me surpreenderam as poltronas que ali estavam, e ao examiná-las tive de admitir, mesmo contra a vontade, que em Marselha o chocolate é servido em cadeiras de espaldar alto, em tudo semelhantes a poltronas operatórias. Então, do outro extremo da rua, veio correndo o proprietário de avental branco, e eu ainda tive tempo de esquivar-me, rindo, à sua proposta de fazer-me a barba e aparar-me o cabelo. Compreendi que o haxixe começara sua obra havia muito, e se não o comprovasse a transformação das caixinhas de talco em caixas de bombons, dos estojos de níquel em tabletes de chocolate, e das perucas em bolos, minhas gargalhadas já seriam advertência suficiente. Pois é com a gargalhada ou com o riso, este mais silencioso, mais íntimo e inebriante, que começa o transe. Eu o reconhecia igualmente pela infinita suavidade do vento que, no outro lado da rua, agitava as franjas do toldo.”


(Haxixe - Walter Benjamin)

(Mote lido por José Petrola para o encontro de 24/09/2021)


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