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Mostrando postagens de julho, 2020

Dando nome às condições, por Camilla Agostini

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O significado da palavra “Escravo”, tal como consta no dicionário etimológico da língua portuguesa, é um “indivíduo que está ou foi privado de sua liberdade, definido como propriedade”; “alguém que é dependente”. No velho livro das palavras consta que seu contrário é “livre, liberto”. Seguindo o rumo dos significados desses lugares e condições muito ouvidos e falados, particularmente em países que estiveram sob regime escravocrata há menos de cento e cinquenta anos, ser “Livre”, para o mesmo dicionário, tem a ver com “a capacidade para agir ou não agir”. Aquele “que não está sujeito a domínio estrangeiro; independente”. Sendo seu contrário, “aquele que está preso; subordinado”. Em última instância a tão sonhada “Liberdade” seria aquele “nível de independência absoluto e legal de um indivíduo, de uma cultura, povo ou nação.  [Por Extensão]  Alternativa que uma pessoa possui para se expressar da maneira como bem entende.  [Por Extensão]  Poder que um cidadão possui para praticar aquilo q

O bebê de Maria, por Leo Almeida

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O bebê de Maria Disseram que era filho dele, do inominável, do coisa ruim. A cidade inteira, assustada, começou a cochichar pelas vielas, gretas escuras, bares. Do dia para a noite, não se teve mais sossego por aquelas bandas: é filho do tinhoso , diziam as beatas na reunião da paróquia, antes da missa, e se benziam assustadas e maldosas. Ao mostrarem qualquer descrença, duvidando da paternidade infernal da criança, algumas pessoas de alma boa e boa crença eram convencidas pelo olhar de ameaça que insistia no vaticínio: esse menino veio das profundas . Estava escrito , diziam. Deve-se à parteira o início de todo esse disse-me-disse. Confidenciando a um grupo de amigas, afirmou que nunca tinha visto nada igual: os olhos, os olhos, eram coisa de outro mundo. Um horror! O corpinho, que se mexia como uma serpente ao sair da mãe, tinha escamas. Sim, eram escamas. Nunca tinha visto algo assim. Nasceu com os olhos de fogo bem abertos e não chorou, pelo contrário, emitiu uma risadinha fina e i

Os dicionários de meu pai, por Francisco Buarque de Hollanda

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Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa; o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances- enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto. Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico vai virando para mim um passatemo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado

Dino e Eu

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Dino e Eu Esta pandemia nos trouxe novamente o território incógnito e misterioso do sonho. Mas parece que um vírus ainda mais estranho penetrou profundamente a casca grossa do inconsciente.  Na última noite sonhei que eu e o Flavio Dino viajávamos de carro pelo interior do país. Mas não era no seu Maranhão solar, mas sim pelas estradas de um Rio Grande do Sul nublado e frio.  Éramos só nós dois no automóvel e ele mesmo dirigia. Há um sentido nisso, pois detesto dirigir. Mas não sei se ele me pedisse para pilotar se eu recusaria. Mas acho que estávamos mais seguros com o governador comunista no volante.  Conversávamos bastante, lembro-me bem. Era uma conersa amistosa, mas não sei se era sobre o Brasil. Lembro apenas que eu concordava bastante com tudo que ele dizia. As estradas do Rio Grande eram bonitas, verdes, e as cidades eram floridas. Mas havia muitas névoas na estrada. E frio.  Numa cidade paramos numa pousada para descansar. E neste ponto, perdi o Flavio Dino de vista. Ele deve

E se o Diabo falasse...., por Alejandro Jodorowsky

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Sou Lúcifer, portador da luz. Meu dom magnífico à humanidade é a ausência absoluta de moral. Nada me limita. Transgrido todas as leis, queimo as constituições e os livros sagrados. Nenhuma religião pode me conter. Destruo todas as teorias, faço explodir todos os dogmas. “No fundo do fundo do fundo, ninguém mora em lugar mais profundo do que eu. Sou a origem de todos os abismos. Sou aquele que dá vida às grutas escuras, aquele que conhece o centro em torno do qual orbitam todas as densidades. Sou a viscosidade de tudo aquilo que em vão tenta ser formal. A suprema força do magma. A pestilência que denuncia a hipocrisia dos perfumes. A carniça mãe de cada flor. A corrupção dos espíritos vaidosos que se comprazem na perfeição. “Sou a consciência assassina do efêmero perpétuo. Sou eu, encerrado no subterrâneo do mundo, quem faz tremer a catedral estúpida da fé. Sou eu quem, ajoelhado, morde e faz sangrar os pés dos crucificados. Quem apresenta ao mundo, sem pudor, minhas feridas abertas