Dando nome às condições, por Camilla Agostini

O significado da palavra “Escravo”, tal como consta no dicionário etimológico da língua portuguesa, é um “indivíduo que está ou foi privado de sua liberdade, definido como propriedade”; “alguém que é dependente”. No velho livro das palavras consta que seu contrário é “livre, liberto”. Seguindo o rumo dos significados desses lugares e condições muito ouvidos e falados, particularmente em países que estiveram sob regime escravocrata há menos de cento e cinquenta anos, ser “Livre”, para o mesmo dicionário, tem a ver com “a capacidade para agir ou não agir”. Aquele “que não está sujeito a domínio estrangeiro; independente”. Sendo seu contrário, “aquele que está preso; subordinado”.


Em última instância a tão sonhada “Liberdade” seria aquele “nível de independência absoluto e legal de um indivíduo, de uma cultura, povo ou nação. [Por Extensão] Alternativa que uma pessoa possui para se expressar da maneira como bem entende. [Por Extensão] Poder que um cidadão possui para praticar aquilo que é de sua vontade, dentro das limitações estabelecidas pela lei”.

No tempo de ilegalidade do tráfico transatlântico de escravos, o Vapor Brilhante foi flagrado em fiscalização. Entre as mais de duas centenas de pessoas a bordo, estava a africana Bonda do Congo, de 18 anos, que diziam estar “maluca”. Entre seus companheiros de sofrimento, de travessia – conhecidos como Malungos – estavam africanos que se autodeclaravam Mavinga, Quengue, Mafuto, Manbu, Bandele, Balo, Matuanga e outros mais. O costume comum de dar um nome, entre diferentes povos das regiões de onde vinha toda essa gente, tinha uma função vital, especialmente ao enfrentar adversidades. Não havia constrangimento em mudar de nome, invocando um que em momento de aflição pudesse fortalecer a criatura em perigo. De outra sorte, quando julgavam que seu nome parecia trazer mau agouro, desventuras, também era motivo para substituições sem cerimônias.


Nesse Vapor repleto de prisioneiros em aflição, violentados, sem nenhuma expectativa do que estaria por vir, chamaram alguém para ver o que se passava à “maluca” Bonda. Não sabiam eles que a moça estava buscando por conta própria elementos para se estabilizar naquela situação de agonia profunda. Em sua língua, Bonda significava “acalmar”. Junto com ela estavam quatro rapazes Congo e um menino Mussorongo de 13 anos, todos chamavam-se Zinga – na língua quicongo, “viver ou permanecer vivo”.


Quando pensamos sobre as noções de Escravidão e Liberdade sob a luz da História da África, podemos ver as relações humanas por outro prisma. Não há um tipo único de formação social sob o rótulo de escravidão, ainda que costume se tratar de formas de exclusão, vulnerabilidade, formas específicas de incorporação e de violência. A língua é um museu vivo que guarda um vocabulário cultural, capaz de falar sobre experiências sociais no ato de tentar traduzir a realidade. A palavra “Escravo”, utilizada por portugueses, traduziu inúmeros vocábulos de diferentes línguas faladas na região do Baixo Congo. Acontece que eles tinham significados diferentes.


Muitos estavam relacionados a um radical antigo comum: pìkà. São eles: mbika (pessoa sem parentesco, dependente); mubika, (aquele que carrega); mvika e musumbwa (aquele que é possuído, bem como pessoa comprada). Kijiku seriam os “escravos comunitários inalienáveis”, enquanto kúnde e fiote (em variante de quicongo na região de Cabinda), “pessoa que se ofereceu para servir a alguém”. No museu das palavras ainda se encontram traduzidas para o português, simplesmente como “Escravo”, tóá (autoóctone, pequeno caçador-coletor); kódE (escravo de guerra); nanga (pessoas oferecidas em tempos de fome, fruto de estratégias desesperadas); fúlà (pessoas de baixo status social); mfungi (do verbo fúnga, “ser abortado; ser abandonado; não ser uma coisa nem outra; ser algo estragado como uma planta que não terminou de ser cozida”). Abika (pl. mubika) eram os filhos das mulheres do interior, capturadas em guerras e razias. Eles nasciam no novo grupo onde suas mães foram incorporadas e começavam a formar linhagens escravas dentro daquela população. Junto com condenados judicialmente, também chamados de mubika, eram as pessoas que podiam ser vendidas e compradas.


Os malungos, cativos nos tumbeiros atlânticos, eram vistos em suas sociedades de origem como mubika, upika, mbika, mvika, musumbwa, etc. Em linhas gerais tratavam-se de pessoas sem pertencimento, subordinadas, estrangeiras, outsiders, sem relação de linhagem com o grupo, incorporadas na sociedade em condição social desfavorecida. Nesse caso, o “Escravo” que o português tentava traduzir era, antes de tudo, alguém sem parente, sem vínculos com alguma linhagem conhecida.


Ao se enveredar pelo maravilhoso mundo das palavras, no outro lado do Atlântico também se encontra uma prática comum entre muitos grupos de justapor de maneira metafórica Seres Humanos como Árvores, usando os mesmos vocábulos para designar um ser humano ou um povo e uma árvore; um galho e um filho; um graveto e um neto, coisas assim. O cativo, fora da linhagem, não pertence a nenhuma árvore; é planta estragada que não terminou de ser cozida.


Faz pensar a potente escolha que fizeram mestres jongueiros no Brasil no pós-abolição, com memórias que remontam ainda o tempo do cativeiro. Ao substituir nomes como Benedito por Cabiúna – um jargão de origem tupi-guarani usado no tráfico ilegal de escravos que designa “madeira preta, dura, de boa qualidade; um tipo de Jacarandá”. Na tradição de mestres Cabiúnas do jongo radicado, melhor dizendo enraizado, no Vale do Paraíba, em Pinheiral, essa designação foi herdada de pai para filho e faz pensar os lugares de liberdade dentro da escravidão.


No entendimento desses centro-africanos ser livre era construir e inserir-se em redes de proteção. Liberdade não se tratava em ter plena autonomia ou não ter circunscrições sociais, mas formas de estabelecer e criar um sentido de EU através de redes de relações que se estabelecem com os outros. Quem EU SOU está subordinado ao pertencimento, que por sua vez assegura o indivíduo de fazer valer suas assertivas.


Na África Central, todos “pertencem” a alguém. Aqueles reduzidos à escravidão, como galhos partidos, tiveram suas vinculações interrompidas. Deixaram de ser “propriedade” do grupo, de forma diluída, passando à posse de apenas um senhor. Ao fim e ao cabo voltar para a outra margem do Atlântico oferece um olhar para a Liberdade bem distante de ideais renascentistas burgueses de autonomia e de laisser faire que é da força do Pertencimento.


 Camilla Agostini é carioca, arqueóloga e historiadora, professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participa do Clube da Leitura desde janeiro de 2017


(Conto apresentado no encontro de 28/07/2020 baseado no texto de Francisco Buarque de Hollanda)

 

Esse texto tem como base as pesquisas do historiador Marcos Abreu Leitão de Almeida:

 

https://saic.academia.edu/MarcosAbreuLeit%C3%A3odeAlmeida

 

https://www.academia.edu/39629073/De_Mvika_%C3%A0_Cabi%C3%BAna_a_din%C3%A2mica_social_de_pessoas_e_lugares_no_processo_de_escraviza%C3%A7%C3%A3o_durante_o_segundo_escravismo






Comentários

  1. Muito interessante, difícil
    acreditar do que um ser humano é capaz de fazer com outro ser.

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  2. Íncrivel como uma palavra igual a "escravo" possar mudar tantas vezes seu significado.
    Realmente as palavras são pessoas muitas letras,varias faces.

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