O bebê de Maria, por Leo Almeida

O bebê de Maria


Disseram que era filho dele, do inominável, do coisa ruim. A cidade inteira, assustada, começou a cochichar pelas vielas, gretas escuras, bares. Do dia para a noite, não se teve mais sossego por aquelas bandas: é filho do tinhoso, diziam as beatas na reunião da paróquia, antes da missa, e se benziam assustadas e maldosas. Ao mostrarem qualquer descrença, duvidando da paternidade infernal da criança, algumas pessoas de alma boa e boa crença eram convencidas pelo olhar de ameaça que insistia no vaticínio: esse menino veio das profundas. Estava escrito, diziam. Deve-se à parteira o início de todo esse disse-me-disse. Confidenciando a um grupo de amigas, afirmou que nunca tinha visto nada igual: os olhos, os olhos, eram coisa de outro mundo. Um horror! O corpinho, que se mexia como uma serpente ao sair da mãe, tinha escamas. Sim, eram escamas. Nunca tinha visto algo assim. Nasceu com os olhos de fogo bem abertos e não chorou, pelo contrário, emitiu uma risadinha fina e irritante. Na verdade, na velocidade peculiar aos boatos, ninguém pode afirmar que ela tenha testemunhado realmente tudo isso, o que se sabe é que o parto foi complicado, que a mãe quase morre e que a criança não era um bebê como os outros, tinha lá seus problemas. Mas isso não importava. Havia uma certeza calcada no edifício escuro da crença, sem sapata, gaiola ou fundação, equilibrando-se na arquitetura típica da superstição e do atraso: é assim e pronto. Certezas são sempre aquilo que se impõem pela passividade, pela submissão, e, aliadas ao fato de que muito mais encanta ao populacho o incomum, o insólito, o sensacional, do que a pasmaceira das coisas vulgares e banais, era previsível e preferível apostar-se na monstruosidade do bebê de Maria. É luciferina aquela criança, determinou o prefeito, numa reunião do partido, que se confundia com a sede da Opus Dei no município.  O padre, indo de encontro à pressão da comunidade, ainda tentou reagir à febre que consumia a lucidez das pessoas. Na homilia do domingo, chamou a atenção dos fieis para o comportamento cruel de algumas pessoas que passaram a hostilizar a mãe da criança.  É terrível o que estão fazendo alguns cidadãos, disse o padre, isso não é um modo cristão de agir, concluiu. Ele se referia ao fato de jogarem pedras no telhado da casa onde Maria morava com a mãe e seu filho recém-nascido, de picharem o muro com letras garrafais: Casa de Satanás, de soltarem fogos à noite para infernizar o sono do bebê do capiroto. Preocupado com a escalada de violência, pediu que a segurança do município protegesse aquelas pobres almas. Filhas de Belzebu, isso sim, alguém sussurrou baixinho no fundo da igreja, arrancando risinhos nervosos de um grupo de senhoras ali perto. O pastor da Igreja protestante, pediu a seus irmãos que tivessem calma, pois Jesus é nosso guia e nenhum mal nos afligirá, não temos por que temer, mas não conseguiu também impedir que houvesse uma fornicação suja de ideias estapafúrdias: O filho do cão está entre nós. O príncipe dos abismos já respira nosso ar. Tudo isso diziam sem receio e sem controle. O medo e o ódio eram muito maiores que qualquer sensatez. Pela primeira vez na cidade, protestantes e católicos irmanaram-se no objetivo comum de eliminar o filho de Satanás, numa espécie insana de cruzada sem provas, mas plena de convicções, como toda e qualquer cruzada. Em reuniões, que não faziam muita questão de esconder, afinal de contas havia policiais no grupo, eles arquitetaram uma maneira de livrar a cidade daquela grande desgraça. Era necessário expulsá-las e, para isso, estabeleceram a estratégia do cerco: Maria, mãe solteira e desempregada, viu-se de repente sem a renda da mãe, que foi demitida de seu emprego como merendeira da Escolha Municipal Brilhante Ulstra. Tudo, a partir de então, lhes foi negado: o mercadinho, a lhes vender comida, a farmácia a lhes vender remédios, o posto de saúde, a lhes fornecer consultas médicas, a energia elétrica e a água foram cortadas. Todos tinham plena certeza de que, assim, não lhes restaria, à Maria, sua mãe e a seu bebê infernal, outra alternativa que não sumir da cidade. Como Deus é grande, apostavam, aquela criatura do mal não teria vida longa.  

Maria saiu de madrugada, ainda escuro, fazia frio, com uma matula de roupas e o bebê no colo. Sua mãe, arrastando uma mala velha, chorava baixinho, maldizendo-se. Pegaram uma carona na estrada, um caminhão que seguia para Natal. O bebê, chamado Emanuel, dormia tranquilamente nos braços da mãe. Os olhinhos embranquiçados, típicos dos cegos, não viam a lágrima a correr na face terna da mãe que lhe oferecia o seio. Sobre a cidade, uma macha escura, assustadora e maligna, descia lentamente, cobrindo os corações dos cidadãos do bem, que, àquela hora da madrugada, dormiam aliviados.  


(conto lido no encontro de 14/07/2020)


Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor,
ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade
de Brasília (2002), publicou, em 2008, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão
manefasto (híbrido, 2008); Nebulosa fauna & outras histórias perversas (e-galaxia,
imenso do espírito (EdUnB), O livro de Loraine (romance, 1998), logomaquia: um contos), Babelical (poemas, Editora Patuá, 2018), Nessa boca que te beija (romance,
Editora Patuá, 2019) e Grande Mar Oceano (romance, Editora Gato Bravo/Portugal,2019)


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