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Mostrando postagens de abril, 2019

Razão é o caralho, por Daniela Ribeiro

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Pois estava eu arrumando a cama em formas geométricas... Meu Deus, por que Guilherme não consegue ver as formas geométricas dos lençóis e das fronhas. Ele faz de propósito! À noite me lê as maravilhas da harmonia do mundo, sobre como Kepler descobriu as órbitas dos planetas e os sons harmônicos a partir de notas musicais; de manhã é incapaz de deixar o tapete perpendicular, ou de ajeitar o lençol de modo a que se assemelhe a um retângulo sobre a cama. Essas harmonias, teoricamente descritas, me parecem um tanto quanto míopes. De perto, de perto, não há nada rigorosamente igual ou simétrico. Se bobear, foram todas construídas a partir de heptaedros, hahahaha. É a única explicação para Bolsonaro ter ganhado as eleições, para Olavo de Carvalho ter algum público, mesmo nas redes sociais, e para o PMDB do Rio de Janeiro existir.  Talvez, quem sabe, se sairmos às ruas armados de violões e violinos desafinados, todos tocando em uníssono infernal, não tiremos os cidadãos de bem de

Caderno de memórias coloniais, por Isabela Figueiredo:

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Ernesto não ia trabalhar há três dias. Era preto e os pretos eram preguiçosos, queriam era passar os dias estendidos na esteira a beber cerveja e vinho de caju, enquanto as pretas trabalhavam na terra, plantavam amendoim ao sol, suando com os filhos às costas, ao peito, e a enxada a subir e a descer. Preto era má rês. Vivia da preta. Não pensava na vida, no futuro, nos filhos. Só queria descansar, dormitar, dançar, cantar, beber, comer, viver vida boa. Era absolutamente necessário ensinar os pretos a trabalhar, para seu próprio bem. Para evoluírem através do reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e com o dinheiro poderiam prosperar, desde que prosperassem como negros. Poderiam deixar de ter uma palhota e construir uma casa de cimento com telhado de zinco. Poderiam calçar sapatos e mandar os filhos à escola para aprenderem ofícios que fossem úteis aos brancos. Havia muito a fazer pelo homem negro, cuja natureza deveria ser anulada – para seu be

O número três implica caos

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O combinado era de que seríamos três. Um, o outro e um terceiro. E o terceiro não seria a simples adição ou a complexa multiplicação dos outros dois. Pois um mais um dá dois; e um vezes um dá um. O terceiro seria um ente autônomo, com suas necessidades e desejos diferentes das necessidades de nós outros. Dizem que o número três é mágico. Falam no poder da Santíssima Trindade. Falam da complexidade da dialética hegeliana: tese, antítese, síntese. E o corpo: cabeça, tronco e membros. No nosso caso, seria simples assim: o um, o dois e o três. Como num triângulo, nem isósceles nem equilátero, um triângulo irregular. Cada lado com seu comprimento. Cada um de nós estava num vértice. E cada um via sempre o segundo e o terceiro. O terceiro deveria ser o produto de nossas ações, o resultado de nosso encontro, mas a verdade é que aos poucos cada um de nós dois começou a ser definido, ou determinado pelo terceiro. O terceiro parecia não ter vindo depois, mas antes. Foi o terceir

Dose, por Walter Macedo filho

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Dose Responsabilidade dela Não tenho certeza se tomei o remédio. Acredito que se eu tivesse tomado, provavelmente já teria feito algum efeito. Não tenho paciência para essas coisas. Por mim, deixaria como está. Mas estou certo de que ela vai notar. Ela vai querer saber. Ela vai conferir a quantidade. Ela sempre sabe a quantidade. Sempre sabe se está certa ou não. Sabe mais do que eu. Mas saber mais do que eu não é lá grande coisa. E se eu tomar agora? E se eu já tiver tomado? Não dá para descuidar. Eu deveria ter prestado mais atenção. Agora já foi. Ela que descubra. Ela que reclame mais uma vez. Que importa? Se ela faz questão de conferir, é porque eu não sou mesmo confiável. Se não dá para confiar em mim, isso passa a ser problema dela, responsabilidade dela. Ela me acostuma mal me tratando sempre assim. Como quer que eu seja diferente? Como posso ser diferente se sempre me acham incapaz para qualquer coisa? Qualquer coisa como, por exemplo, tomar um remédio na hora certa. Mas

A Harmonia do Mundo, por Johannes Kepler

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1o de fevereiro de 1618 Meu coração está dividido: de um lado as tristezas que a vida me traz e, de outro, a alegria que sinto ao contemplar as verdades escritas nos céus. Depois de sofrer terrivelmente, minha mãe - ou o que restou dela - enfim foi libertada. Mal festejamos, minha enteada e uma filha minha morreram, e outra teve de mudar-se para longe. Susanna e eu temos tentado lidar da melhor forma possível com essa sucessão de tragédias. Ludwig e Katharina são nossa única inspiração nestes dias difíceis. Não sei o que faríamos sem os dois... Deus os proteja! Quando posso, fecho-me no escritório e procuro as harmonias do mundo. Voltei a estudar os ensinamentos de Pitágoras e de seus discípulos sobre as relações entre os números e os sons harmônicos. Benditos sejam nossos antepassados da Grécia! Descobriram, soando as cordas da lira, que os sons são agradáveis, ou melhor, harmônicos, apenas quando o comprimento do de duas cordas satisfazem razões simples entre si - 1:2 (uma corda