A Harmonia do Mundo, por Johannes Kepler

1o de fevereiro de 1618


Meu coração está dividido: de um lado as tristezas que a vida me traz e, de outro, a alegria que sinto ao contemplar as verdades escritas nos céus. Depois de sofrer terrivelmente, minha mãe - ou o que restou dela - enfim foi libertada. Mal festejamos, minha enteada e uma filha minha morreram, e outra teve de mudar-se para longe. Susanna e eu temos tentado lidar da melhor forma possível com essa sucessão de tragédias. Ludwig e Katharina são nossa única inspiração nestes dias difíceis. Não sei o que faríamos sem os dois... Deus os proteja!

Quando posso, fecho-me no escritório e procuro as harmonias do mundo. Voltei a estudar os ensinamentos de Pitágoras e de seus discípulos sobre as relações entre os números e os sons harmônicos. Benditos sejam nossos antepassados da Grécia! Descobriram, soando as cordas da lira, que os sons são agradáveis, ou melhor, harmônicos, apenas quando o comprimento do de duas cordas satisfazem razões simples entre si - 1:2 (uma corda duas vezes mais longa do que a outra), 3:4, 5:8, etc. Ao refletir sobre isso, perguntei-me por que razões envolvendo o número 7, como 1:7 ou 3:7, criam sons dissonantes.

Descobri a resposta usando a geometria! Quais figuras geométricas que cabem dentro de um círculo, dividindo-o em arcos de tamanhos iguais? Resposta: as que dividem os 360 graus em partes iguais! O triângulo, por exemplo, divide o círculo em arcos com 1:3 e 2:3 de sua circunferência; o quadrado, em arcos com 1:4, 1:2, 3:4; o pentágono com 1:5, 2:5...; o hexágono, com seus seis lados, 1:6... 5:6. Pois são justamente essas razões que criam as notas harmônicas! O mesmo já não ocorre com o heptágono ... e por que não? Porque o heptágono é uma das figuras que não podem ser construídas usando-se um compasso, uma régua e as regras de geometria de Euclides. O mesmo ocorre, por exemplo, com o polígono de 11 lados. Isso não é uma coincidência! Ambas são uma aberração geométrica, justamente chamadas de formas "incomensuráveis". Portanto, não podem pertencer aos arquétipos harmônicos com que Deus construiu o cosmo.

Sabemos disso porque nós, humanos, temos a habilidade instintiva de perceber a ordem geométrica das coisas. É como se Deus nos houvesse dado o dom de enxergar o mundo como uma combinação de formas e proporções determinadas pelas leis da geometria. A música, como demonstraram os pitagóricos, foi o primeiro exemplo. E não é necessário que sejamos músicos para compreender isso: uma pessoa que não entende de música nem de matemática sabe, ou melhor, sente quando um instrumento está desafinado. Sua alma ressoa apenas quando aqueles sons são harmônicos... Sons dissonantes criam antagonismos, influências negativas. conforme argumentei acima, os sons harmônicos têm representações geométricas, dadas pelos polígonos "comensuráveis". São esses átomos que Deus usou para construir o mundo, oa átomos da harmonia cósmica.

Afinal não demonstrei no meu Mysterium que as órbitas dos planetas são descritas pelos cinco sólidos platônicos? E como são construídos esses sólidos? Com base nos polígonos comensuráveis! Si, existem discrepâncias entre os dados de Tycho e minha hipótese poliédrica. Mas quão ínfimas são quando consideramos a vastidão das distâncias cósmicas! Só o que podemos fazer é usar nossa mente imperfeita para imitar a perfeição divina. A astronomia e a filosofia natural devm ser vistas assim, como representações imperfeitas da obra perfeita de Deus. Continuarei a buscar as relações harmônicas que regem as órbitas planetárias e as interações entre o cosmo e o homem. Se Deus usou arquétipos geométricos para construir o mundo, essa harmonia não se limita à música. Tudo o que existe, do comportamento humano aos movimentos celestes, deve obedecer às mesmas regras fundamentais. Preciso apenas encontrá-las!


Trecho extraído de A Harmonia do Mundo, de Marcelo Gleiser. São paulo: Cia das Letras,2006 

(mote vencedor lido por Guilherme Preger para o encontro de 09/04/2019). 











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