Dose, por Walter Macedo filho

Dose

Responsabilidade dela
Não tenho certeza se tomei o remédio. Acredito que se eu tivesse tomado, provavelmente já teria feito algum efeito. Não tenho paciência para essas coisas. Por mim, deixaria como está. Mas estou certo de que ela vai notar. Ela vai querer saber. Ela vai conferir a quantidade. Ela sempre sabe a quantidade. Sempre sabe se está certa ou não. Sabe mais do que eu. Mas saber mais do que eu não é lá grande coisa.
E se eu tomar agora? E se eu já tiver tomado? Não dá para descuidar. Eu deveria ter prestado mais atenção. Agora já foi.
Ela que descubra. Ela que reclame mais uma vez. Que importa? Se ela faz questão de conferir, é porque eu não sou mesmo confiável. Se não dá para confiar em mim, isso passa a ser problema dela, responsabilidade dela. Ela me acostuma mal me tratando sempre assim. Como quer que eu seja diferente? Como posso ser diferente se sempre me acham incapaz para qualquer coisa? Qualquer coisa como, por exemplo, tomar um remédio na hora certa. Mas se eu fosse tão ajustado, tão ciente de tudo, nem precisaria tomar esse maldito remédio.
Com essa chuva ela vai demorar. O trânsito fica caótico.
Um nó. As pessoas não sabem dirigir na chuva. É inacreditável.
Quando eu dirigia, não tinha problema nenhum. Podia estar chovendo, caindo o céu, o que fosse, eu andava para todo lado. Nunca tive medo de chuva. Nunca tive medo de nada. Tem gente que detesta dirigir de madrugada. Eu não.
“O que foi dessa vez?”
As últimas vezes que eu fiquei sozinho foram tranquilas. Mas ela chegava logo. Ela não demorava tanto. O baralho já não me distrai como antes. De vez em quando os números se misturam e me dá uma grande aflição. Não posso contar isso para ninguém. Cada vez tenho menos coisa para contar para os outros. Tenho medo de ser julgado. Não dá mais para errar. Qualquer besteira e eles vão dizer que é por causa do remédio. Ou por causa do problema que eu tenho. Ninguém mais acredita que pode ser só um pequeno deslize, um simples engano, que pode acontecer com qualquer pessoa, todo dia. As pessoas normais também se enganam e se esquecem das coisas. As pessoas normais também acordam diferentes alguns dias e ninguém se importa. Dão risada e seguem a vida. Ninguém se afasta das pessoas que esquecem onde deixaram o carro no estacionamento do shop- ping. Tiram sarro umas das outras e continuam levando a vida normalmente. Normalmente. Eu não posso me esquecer de nada. Estou proibido de esquecer. Impedido de errar.
Eu poderia ligar para ela. Mas tenho medo. Tenho medo de que ela pergunte: “O que foi dessa vez?” Odeio quando ela pergunta isso. É uma violência. É como se eu sempre tivesse uma coisa ruim para contar para ela. Ela poderia ser mais carinhosa, mais compreensiva. Poderia se interessar pelas minhas coisas. Poderia ter mais interesse por mim. Não quero que ela cuide de
mim, quero que ela tenha interesse. É bem diferente.
Escapam palavras
Gostaria de poder contar para alguém sobre os sons que ouço vindos da rua. Eles se transformam em pequenas melodias. É bonito. Se eu soubesse tocar algum instrumento, mostraria que músicas são essas. Elas ficam só para mim. Não posso dividir com ninguém. Bem que eu gostaria.
E tem as palavras. As palavras que vêm na minha cabeça e que escapam da minha caneta. Não consigo guardar quase nada. Minha memória está piorando. Tenho medo de acordar um dia completamente esquecido de tudo.
É melhor eu tomar o remédio. Gostaria tanto de ser ela. Tenho muita vontade de estar no lugar dela. Vou tomar o remédio que ela toma. O vidro todo.

Walter Macedo Filho


(Conto do livro Nebulosos - Ed. 7Letras, 2012 https://www.7letras.com.br/nebulosos.html)


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