Caderno de memórias coloniais, por Isabela Figueiredo:
Ernesto não ia trabalhar há
três dias. Era preto e os pretos eram preguiçosos, queriam era passar os dias
estendidos na esteira a beber cerveja e vinho de caju, enquanto as pretas
trabalhavam na terra, plantavam amendoim ao sol, suando com os filhos às
costas, ao peito, e a enxada a subir e a descer. Preto era má rês. Vivia da
preta. Não pensava na vida, no futuro, nos filhos. Só queria descansar,
dormitar, dançar, cantar, beber, comer, viver vida boa.
Era absolutamente necessário
ensinar os pretos a trabalhar, para seu próprio bem. Para evoluírem através do
reconhecimento do valor do trabalho. Trabalhando, poderiam ganhar dinheiro, e
com o dinheiro poderiam prosperar, desde que prosperassem como negros. Poderiam
deixar de ter uma palhota e construir uma casa de cimento com telhado de zinco.
Poderiam calçar sapatos e mandar os filhos à escola para aprenderem ofícios que
fossem úteis aos brancos. Havia muito a fazer pelo homem negro, cuja natureza
deveria ser anulada – para seu bem.
De maneira que,
ocasionalmente, aos sábados à tarde, o meu pai tinha de ir ao caniço procurar o
Ernesto.
O caniço era para os lados
de Xipamanine, ou do aeroporto, ou longe, longe. O caniço era como o labirinto
do Minotauro, e o meu pai era o Minotauro que aí entrava e saía, quando lhe
apetecesse, para exercer sua justiça.
O caniço talhava-se de
caminhos estreitos, recortados por entradas para aglomerados de palhotas, onde
se juntavam mulheres falando, crianças chorando ou brincando, cães sarnosos
dormindo, cabritos remoendo capim, pilões pilando milho, vozes altas, latas de
comida fumegando sobre o carvão; a vida. O caniço era construído de cana velha,
já cinzenta, ou nova, cor de café com leite clarinho.
O meu pai levava-me pela mão,
e eu sentia-me portátil como uma mochila leve; ia quase no ar. A terra era
vermelha e havia uma poeira cor-de-rosa sobre todas as coisas. Por vezes o meu
pai parava e perguntava, onde fica a casa do Ernesto tal e tal? Ah, era mais
adiante, perto duma árvore grande, duma cantina velha, dum cruzamento onde
estava uma palhota nova, e depois ia, ia, ia, encontrava. O meu pai perguntava,
eu atrás, voando sobre o solo vermelho, espreitando pelos recortes das
divisórias de caniço atrás das quais se escondia a vida dos negros, essa vida
dos que eram da minha terra, mas que não podiam ser como eu. Eram pretos. Era
esse o crime. Ser preto. Depois o meu pai encontrava o lugar, é aqui que mora o
Ernesto? Onde está o preguiçoso? A mulher apontava a palhota. O meu pai
largava-me a mão e entrava. Eu ficava fora, abraçada ao meu peito, no meio das
galinhas, dos filhos descalços do preto, da preta, dos outros pretos todos da
vizinhança que tinham visto o branco e vinham saber.
O meu pai gritava lá dentro
e, aos safanões, trazia-o para fora, atordoados ambos. Segunda, vais trabalhar,
ouviste? Segunda, estás nas bombas às sete. Vais trabalhar para tua mulher e
para os teus filhos, cabrão preguiçoso. Queres fazer o que da vida? Safanão.
Soco. E a mulher e os filhos e o bairro todo, e eu, estávamos ali, imóveis,
paralisados de medo do branco.
Terminada a função, o branco
mete uma nota na mão da negra e diz-lhe, dá de comer aos teus filhos; depois
levanta-me no ar atrás de si, presa pelo seu pulso, enquanto grita ao negro, segunda-feira,
nas bombas, ai de ti.
(Mote para o encontro de 30/04/2019, lido por João Mattos)
Editora Todavia, 2018.
[Isabela Figueiredo nasceu em Maputo em 1963, e mudou-se para Portugal
em 1975. Publicou também o romance A gorda.
A
respeito do Caderno
de memórias coloniais, disse Paulina
Chiziane: "Isabela Figueiredo, filha de colono racista, tem os mesmos
sentimentos que eu, filha de colonizado racista. Ambos reconhecemos que a
humanidade atravessa as fronteiras de uma raça. Pretos e brancos, somos todos
humanos, e nada mais. Colonos e colonizados tivemos um encontro histórico que hoje
estamos a analisar. Guerreámo-nos. Matámo-nos. Odiámo-nos e amámo-nos.
Construímos juntos e construímo-nos mutuamente, para o bem ou para o mal. Esta
é a verdadeira história. O resto são fantasias. Tretas." ]
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