Balão Cativo, por Pedro Nava

Quando não olhava para a Charlotte Corday nem para a Princesa de Lamballe, quando não lia — suspendia as âncoras, alestava os cabos, levantava minhas velas e saía mar afora. Para isto bastava fechar os olhos e encostar aquele búzio no ouvido. Era uma fantástica e gigantesca concha univalve cuja espiral não se desenvolvia em torno de uma linha, mas como giro que partisse do flanco de um cilindro. Essa anomalia do molusco deixava por dentro tuba que emitia o som grave, penetrante, profundo e antigo — o mesmo das que eram usadas pelos tritões no mundo de outrora. Eu tomava e soprava largamente como quem procede aos encantamentos. Ao seu troante apelo, como que o mar suscitado se empolava feito se dele fosse nascer outra lua e, do torvelinho da espuma de olhos fugazes, surgiam, cantando, nereidas de ventres nacarados, de altos pentes incrustados de caramujos e de imensas nádegas opalescentes. Punha no ouvido e do côncavo da concha vinha aquele ruído de para-sempre, aquele sustenido nas alturas permanentes (que continua ali, preso no colos que veio morar no meu escritório e onde eu escuto a infância quando quero) abrindo perspectivas longínquas contendo todos os mares, de todas as cores; peixes de todas as formas e tamanhos; barcos de todas as idades e todas as aventuras marítimas. Argonautas, velocinos, odisseias, fenícios, lusíadas, cantábricos, viquingues, descobertas, bucaneiros, saques, barganhas, butins, marés, batômetros, cartas, portulanos, canais, embocaduras, rias, estuários, promontórios, penínsulas, porto seguro. Eu abria os olhos, punha a concha no lugar, calava-se o vento, emudecia o estouro das ondas e logo me ocorria o único ensinamento que ia ficar dos tempos do Machado Sobrinho: "... Américo Vespúcio visitou a costa". Essa frase, desengastada do seu texto, veste-se até hoje, para mim, de mistério pelágico e poesia talássica... Ora, eu estava assim um dia, sonhando, de olhos abertos, com espumas brancas na distância de um mar azul, quando o ar de nossa sala foi cortado pelo voo da gaivota que, fechando as asas, caiu aos meus pés. Só que não era gaivota. Era um cartão-postal atirado de fora. Corri à janela e na rua deserta e cheia de sol, vi minha prima Amair apressando os passos, deixando nossa calçada e atravessando a rua em direção de sua casa. Amair! Amair!, mas ao meu chamado ela acelerou e correu. Olhei o cartão. Representava uma horrenda velha, de touca, fichu e expressão maligna – com um cadeado passado pelos beiços e trancando a boca maldizente. Trazia escrito em letras caprichadas: "O que acontecerá brevemente à Maria Luísa". A terra me estremeceu debaixo dos pés ao tomar conhecimento daquele sacrilégio cometido contra a Inhá Luísa. Pela prima Zezé! porque claro que o cartão jogado pela filha só podia ser dela, que andava conosco a ferro e fogo. Fui mostrá-lo a minha Mãe. Houve uma reunião Indignada dela e das irmãs. À noite, bem tarde, a Rosa foi enfiar debaixo da porta inimiga a adequada resposta — era o mesmo cartão, mas mais carregado de veneno que uma túmida esponja. Uma semana depois chegava a notícia da morte do Dr. Adolfo Pereira, marido da prima Zezé, que há anos vivia em São Paulo. Minha avó e minhas tias foram visitar, fazer as pazes, dar pêsames — como se cartão não houvesse. Ela viajou, passou meses fora, voltou viúva rica. Ninguém sabia! mas o Dr. Adolfo amoedara e morrera nadando em dinheiro. Quando a Zezé chegou e veio pagar a visita, para humilhar minha avó, atravessou a rua de carruagem. Trazia chapéu de veludo preto e pleureuse do mesmo negro. Vidrilhos. Luvas. Falou todo o tempo das propriedades e das somas que herdara, sacudindo a cabeça para mostrar os brincos de ouro em forma de crescente —acintosamente copiados dos de tia Dedeta. Minha avó fervia. Era um desaforo. Rompemos outra vez e recomeçou o vaivém dos postais alusivos e anônimos —até que a prima e os filhos mudaram para uma chácara paradisíaca no Rio, na estação do Riachuelo, à Rua Flack, 135.


Fragmento de Balão Cativo, de Pedro Nava.

Rio de Janeiro : José Olympio. 1974. 2ª ed.

(Lido por João Mattos para o encontro de 05/10) 


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