Minha visita ao doutor Steiner, por Frantz Kafka

Minha visita ao Dr. Steiner.

Uma mulher já está à espera (no segundo andar do Hotel Victoria, na Jungmannstrasse), mas urge para que eu a preceda. Aguardamos. A secretária chega e nos pede paciência. Dou uma olhadela para o corredor e o vejo. De pronto, ele se encaminha para nós com os braços semiabertos. A mulher explica que fui o primeiro a chegar. Sigo-o, portanto, rumo a sua sala. A sobrecasaca preta que ele usa em suas palestras noturnas e que parece ter sido lustrada (mas não foi: é apenas a pureza do preto que a faz cintilar) apresenta-se agora, à luz do dia (três horas da tarde), empoeirada e até mesmo manchada, sobretudo nas costas e nos ombros. Em sua sala, procuro demonstrar a humildade que não logro sentir procurando um lugar ridículo para pendurar meu chapéu; penduro-o num pequeno suporte de madeira que serve de apoio para amarrar as botas. Há uma mesa no centro da sala, sento-me de frente para a janela, ele, à esquerda da mesa. Sobre ela, alguns papéis com desenhos que lembram os da palestra sobre fisiologia oculta. Um volumezinho da revista Anais da Filosofia da Natureza encobre uma pequena pilha de livros, que parecem espalhar-se por toda parte. Só que é impossível olhar em volta, porque ele está sempre tentando nos deter com seu olhar. Quando não o faz, é preciso atentar para o momento em que tornará a voltar os olhos em nossa direção. Ele principia com algumas frases soltas. “Então o senhor é o dr. Kafka. Já se ocupou detidamente de teosofia?” Eu, de minha parte, avanço com meu discurso preparado com antecedência: sinto que grande parte do meu ser almeja a teosofia, mas, ao mesmo tempo, tenho um medo enorme dela. É que temo que ela me traga mais confusão, o que seria muito ruim, uma vez que já minha infelicidade atual compõe-se de nada mais que confusão. E essa confusão consiste no seguinte: minha felicidade, minhas capacidades e toda possibilidade de eu vir a ser útil de alguma forma situam-se desde sempre no terreno da literatura. Nele, aliás, vivi situações (não muitas) que, na minha opinião, muito se aproximam daquelas que o senhor, doutor, descreveu como clarividentes, situações nas quais habitei cada uma de minhas ideias, mas as realizei também, e nas quais me senti não apenas no meu limite, mas no limite do humano em si. Faltou-me apenas aí, ainda que não de todo, o entusiasmo sereno que provavelmente é próprio do clarividente. É o que deduzo do fato de não ter produzido o melhor de minha escrita em tais situações.  – À literatura, porém, não posso me dedicar por inteiro, como precisaria, e por diversas razões. À parte a situação familiar, já em virtude da lentidão na produção de meus escritos e de seu caráter peculiar, eu não conseguiria viver de literatura; além disso, minha saúde e meu caráter constituem outros impedimentos a que eu me dedique a uma vida, na melhor das hipóteses, incerta. Tornei-me, portanto, funcionário de uma companhia de seguros. Só que esses dois ofícios jamais poderão tolerar um ao outro e ensejar uma felicidade comum. A menor das felicidades em um torna-se uma grande infelicidade no outro. Se, numa noite, escrevi algo de bom, no dia seguinte no escritório não consigo fazer nada, de tanta ansiedade. E esse vaivém piora a cada dia. Exteriormente, cumpro minhas obrigações no escritório, mas não as obrigações interiores, e cada dever interior não cumprido transforma-se numa infelicidade que não me abandona mais. Devo agora, então, acrescentar um terceiro empenho – a teosofia – aos dois outros, jamais saldados? Ela não atrapalhará os outros dois, não acabará destruída por eles? Poderei eu, presentemente um homem já tão infeliz, conduzir os três a bom termo? Vim aqui, doutor, para lhe perguntar isso, porque pressinto que, caso o senhor me considere capacitado para tanto, eu poderei efetivamente assumir essa tarefa.”

(Mote lido por José Petrola para o encontro de 14/09)


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