O Novo Normal, por Guilherme Preger

O Novo Normal


Foi o momento de calmaria na pandemia e no pandemônio da vida. Diziam que estávamos no olho do furacão. Ou naquele momento em que o tsunami puxa a água do mar e a praia aumenta. Diziam que na Europa e na África já se formava uma onda gigantesca com a nova variante da peste. As pessoas não aguentavam mais tanta morte e tanto confinamento. O dia a dia havia se tornado pesado e agora as pessoas se lançavam às ruas como quem, depois de um mergulho profundo, sobe à tona em busca de ar. Por isso Vanessa foi fazer escova no cabelereiro. 

O cabelo estava uma vassoura de piaçaba. Fazia mais de dois anos que Vanessa não ia ao cabelereiro. Ela tinha se afeiçoado àquela imagem de bruxa, com o cabelo desgrenhado. Aliás, estava lendo muita literatura de bruxa. As bruxas, na verdade, eram mulheres poderosas que sabiam usar as plantas para a cura e para aumentar o desejo sexual. De homens e de mulheres. Vanessa gostava de se ver como bruxa. Mas infelizmente, aquele cabelo revoltado não estava funcionando no aplicativo de encontro. Apenas com as amigas. Vanessa foi fazer escova porque queria um novo perfil no aplicativo. Agora eu vou aproveitar e passar o rodo. 

Ela achou engraçada a expressão “passar o rodo”. Seria que tinha alguma conotação “fálica”? Depois ela viu que não, passar o rodo era catar os pequenos objetos e cacos deixados no chão. Passar o rodo era juntar os cacos. Vanessa pensou nos cacos de sua vida afetiva durante a pandemia. Havia comprado vários brinquedos para se virar sozinha, já que os aplicativos de encontro ficaram perigosos. Sua última transa tinha sido com a Lu, sua melhor amiga, no dia em que ela tinha recebido a segunda dose. Venha aqui comemorar, foi o que ela disse para Lu. E foi maravilhoso. E Vanessa ficou pasma porque todas as suas últimas transas, mesmo antes da pandemia, foram com suas amigas. 

“É para o aplicativo de encontros”?, perguntou a cabelereira, que era uma trans. Vanessa riu e disse SIIIIIIIIM! A cabelereira então disse que todas as meninas estavam fazendo escova para o aplicativo de encontro. “Está toda munda querendo dar adoidada”, riu a cabelereira.  Vanessa riu também porque era exatamente isso que ela queria. Dar adoidada. 

Até já me depilei, disse à cabelereira. Eu realmente eu não aguento esses boys que têm medo de pentelhada, tipo a Origem do Mundo. “O que é a Origem do Mundo”? Ah, é um quadro antigo com uma bocetona aberta no meio de uma floresta de pentelhos. “Deve ser legal”, disse a cabelereira. Vanessa procurou no celular a imagem do quadro de Courbet e a mostrou. “NOSSA! Isso aí é a Amazônia?”, e riram juntas. Isso aí sou eu antes da depilação, kkk, disse Vanessa. Mas os garotos estão muito frescos hoje em dia. Ninguém encara mais uma floresta dessas. Parece que têm medo de se perder lá, sem a mamãe deles. “Ah, só pode ser”, disse a cabelereira. “Homem hoje é tudo viado. Vou te mostrar uma coisinha”. Abriu a bolsa e mostrou um strap com um consolo de plástico: “Eles adoram!”. E riram juntas para o salão todo ouvir.   

E Vanessa então ficou quieta enquanto a cabelereira fazia seu trabalho. Ficou pensando no seu próprio emprego em que teria que voltar ao modo presencial. Acordar cedo novamente e fingir que trabalha para passar o tempo. Ficaria conversando no inbox do aplicativo do celular para marcar um encontro de noite. Queria tirar logo o atraso. Cada dia da semana, com um ou uma diferente, pois ia abrir o perfil para todos e todas. Queria tudo o que tinha direito. 

A pandemia havia mostrado que a vida é curta. Vanessa perdeu um tio e um amigo durante esse período. O tio tinha enfisema devido aos maços de cigarros caretas que ele fumava todos os dias. Mas com o amigo foi algum azar, pois ele era jovem e aparentemente saudável. Vanessa se arrependeu por nunca ter transado por ele, só porque ele tinha uma namorada que ela não conhecia. Não transou com ele por “sororidade” com uma desconhecida, e não houve nova chance. Ficou triste pelo amigo e pelo sexo que não rolou. Lembrou da frase do Millôr, que sempre achara machista, mas que agora entendia perfeitamente: uma trepada que não ocorreu é uma perda irreparável. E seu rosto se ensombreceu no espelho por trás da máscara.   

“Amiga, que cara é essa? Como você vai foder desse jeito? Levanta essa espinha, Amiga, eu vou te ensinar uma maquiagem que vai te deixar uma piranha linda! Tira essa máscara, que agora eu estou boazinha, já fiz meu PCR. Para quem é bruxa como eu, é teste a cada cinco dias, Amiga.  

Vanessa riu novamente e o espelho iluminou afinal sua face como um filtro na rede social. Uma nova vida começava. Ela precisava reaprender a ser feliz. 

“E #Lula2022, porque está osso!”, disse a cabelereira. Sim, #Lula2022, disse Vanessa, pensando na guerra de vida ou morte que aparecia no horizonte como outra tempestade. Vamos fazer um selfie juntas e de cara limpa para terminar? 

(Conto escrito para o encontro de 07/12/2021)

Guilherme Preger é engenheiro e escritor anômalo. É autor de Capoeiragem (7Letras 2003), Extrema Lírica (Oito e Meio, 2014) e Fábulas da Ciência (Gramma, 2021). Está no Clube da Leitura desde sua criação. 


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