Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz
Vamos comprar um poeta
Afonso Cruz
A escolha de um poeta
No dia da escolha, fomos a uma loja, eu e o pai. O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que infelizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave á competitividade mais elementar. Na loja havia poetas de muitos tipos, baixos, altos, louros, com óculos (são mais caros), sendo a maior parte, sessenta e dois por cento, carecas, e sessenta e oito por cento de barba.
Gostei de um que era ligeiramente marreco, uma escoliose com uma curvatura oblonga. Trajava um colete de fazenda, setenta e cinco por cento lã, sendo os restantes vinte e cindo nylon, calças de bombazina castanhas, pantone setecentos e trinta e dois, sapatos de couro já muito usados. Fungava e tinha um livro debaixo do braço. Nenhuma das suas roupas tinha patrocínio de marcas.
O pai cumprimentou o vendedor com a cortesia destas ocasiões, há sempre uma grande solenidade, sacralidade, no ato de iniciar um possível negócio.
Que os números lhe sejam favoráveis, disse ele.
Crescimento e prosperidade, respondeu o vendedor.
O pai apontou para o poeta que fungava e não tinha patrocínio nas roupas e perguntou se aquele exemplar era subversivo, que é a característica mais temida nos poetas, é o equivalente à agressividade dos cães.
O senhor da loja respondeu:
Está abaixo dos dois por cento. É sempre necessário serem um pouco subversivos ou a qualidade poética baixa demasiado e não gera lucro, ninguém compra, acabam preteridaos a bailarinos ou hamsters.
O que é que ele come?
Qualquer coisa. Não sai muito esquisitos, muitas vezes, três a quatro ocorrências por semana, chegam inclusivamente a esquecer-se de comer. Alguns abandonam a refeição a meio e levantam-se para deambular sem qualquer destino. Acontece muito ao pôr do sol ou ao luar ou com nevoeiro, é um comportamento típico. Não estranhem se os virem parados muito tempo como se estivessem a fazer contas. Não estão, são incapazes da soma mais elementar. Essas paragens são precisamente os momentos em que começam a fazer poemas nas suas cabeças. É um processo fascinante. Não se irão arrepender de comprar um poeta. E são muito mais asseados do que os artistas.
Já tinha ouvido dizer.
Mais alguma coisa que devamos saber sobre a manutenção de um destes exemplares?, inquiri eu.
Para o entreter, compre-lhe cadernos com folhas brancas e canetas. Pode também adquirir alguns livros. Temos várias marcas.
(Mote lido por Ana Claudia Calomebi para o encontro do dia 09/11)
Muito bom
ResponderExcluir