Dresden, por Camilla Agostini

Conheci um sujeito das bandas de lá. Ele contava que quando criança esperavam os tios virem visitar. Era quando traziam presentes da Alemanha Ocidental. Ficara radiante, já adolescente, com a chegada do jeans em uma dessas visitas. Aos dezenove anos tentou fugir, atravessando a fronteira pela floresta. Como muitos alemães, guardava memórias antigas do tempo da guerra, mesmo aquelas herdadas ou as ouvidas quando esteve preso, por ousar ter outra escolha àquela que lhe oferecia o seu país.
Contava que a primeira coisa que os russos faziam no tempo da guerra, ao invadirem uma cidade, era retirar o sino da igreja. Disse isso como se fosse evidente, acompanhado de um silêncio imperativo. O tempo, regulado pelas badaladas, não estaria mais nas mãos de Deus, era esse o recado? Contava também que os casais, quando os homens partiam para a guerra na Rússia, lavavam os pés um do outro, em um ritual de despedida e de afeto, pois não sabiam quando, ou mesmo se, iriam se reencontrar.
Conheci também um sujeito das bandas de cá. Olhos azuis de profundo mistério. Um felino silencioso que não era capaz de falar sobre a guerra. Ao saber sobre o outro, declarou grande respeito por aqueles que tentaram cruzar a fronteira, apontando em seguida para a parede que estava atrás, repleta de furos, marcas antigas em um restaurante de Berlim.
Com os olhos atentos às suas memórias lembrei-me das paredes marcadas de nossas escolas, dos nossos muros que não tem lados para onde fugir. No jeans barato que podemos comprar em Caxias. No tudo que se encontra a bom preço na Uruguaiana, Made in China, quem sabe, produzido com mão de obra infantil, escrava, coisa assim.
Nos instrumentos musicais feitos a partir de sucata e na formação de uma orquestra dentro de uma escola, aprendendo a fazer todo tipo de música com esses instrumentos, inspirada por um professor. Conheci os sujeitos dessa orquestra, que venceram o medo e quando podiam estar livres no pátio, ensaiavam para uma apresentação nunca imaginada em suas vidas. Um convite que receberam para se apresentarem na Alemanha, ao vencerem um Edital de Cultura do governo.
Aqueles adolescentes fizeram, como heróis de guerra, a primeira viagem para fora da cidade em suas vidas. Tiraram passaporte, passaram pelo aeroporto internacional, viajaram de avião, atravessaram o oceano Atlântico, foram recebidos por estrangeiros altos e loiros de língua difícil e se apresentaram em um teatro chic de doer. No retorno, radiantes, sem mais caberem em si, com tantos planos de futuro, encontraram a escola em luto. Maicon, colega de doze anos que já se encontrava ferido no hospital por bala perdida, mas em estado estável, não havia resistido a uma infecção hospitalar. Doze anos. Quanto tempo precisará para que nossas crianças possam contar com o futuro?

Esse texto é uma homenagem a Victor Romero de Azevedo que não pode dar continuidade a um projeto de pesquisa sobre o Batuque Reciclado e a todos os professores verdadeiros heróis que compartilham dramas e conquistas nas salas de aula do Mestrado Profissional em Ensino de História / Profhistória – Brasil.

(Conto vencedor do encontro do dia 08/10/2019)

      Camilla Agostini é carioca, arqueóloga e historiadora. Participa das reuniões do Clube da Leitura        desde janeiro de 2017.




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