Nenhum Olhar, José Luís Peixoto


Na última noite do verão, como fazia sempre nas últimas noites de cada estação desde os dezoito anos, José foi à casa da prostituta cega. Prostituta, foi uma palavra que um viajante por ali deixou e que as pessoas que moravam na vila aproveitaram para baptizar a prostituta cega. Era uma palavra estranha e difícil, que se enrolava na boca, que os habitantes da vila só utilizavam quando se referiam à prostituta cega, mas era uma palavra muito adequada, porque não era a palavra puta. A prostituta cega não era puta, era uma mulher, triste por ser cega, que fazia favores por não poder fazer mais nada. A mãe dela tinha sido igual a ela, a avó dela tinha sido igual a ela, mas dizia-se que a bisavó tinha sido uma baronesa caprichosa que abandonara a filha entre umas balsas. Abandonara-a por ser menina. E ao vê-la, ainda suja do seu sangue; ao vê-la, desgostosa por não ser o menino que imaginara e a quem fornecera um enxoval completo comprado em Lisboa; ao vê-la, pela primeira vez, disse tem cara de puta. Dizem os homens que as cicatrizes da sua avó ainda traçam o ventre e as costas da prostituta cega. Diz toda a gente que os espinhos cegaram-lhe a avó, e ficaram-lhe por dentro para cegar todas as filhas que tivesse. A mãe da prostituta cega fora cega. A prostituta cega tinha uma filha cega. Uma menina de um ano que raramente saia à rua. Bonita por ser pequenina, cega. A prostituta cega não era puta e José foi visitá-la na última noite do verão. Ela morava na rua da palha e, quando ouviu três pancadas leves na porta, já o esperava. De propósito para ele, acendera uma luz muito sumida no candeeiro de petróleo e, pela escuridão manchada de claridade baça, avançou à frente de José e entrou pelo quarto. Pela porta aberta do quarto, entrava ainda mais timidamente a luz fraca do candeeiro e, com essa luz, José pôde distinguir o corpo da criança deitada sob os lençóis. Era o corpo pequeno de uma menina de cabelos negros e compridos e, sob as pálpebras que não tinha, o buraco dos olhos. Talvez dormisse. Sem falarem ou fazerem barulho, despiram-se e deitaram-se ao lado da menina. Fizeram amor, a conhecer cada um o corpo do outro, a ser cada um o corpo do outro, José lavou-se na bacia que estava na cozinha e deixou dinheiro sobre a mesa de madeira tosca. No caminho para o monte e sob a noite, José pensou nos olhos da prostituta cega. Eram dois buracos muito fundos e lisos de carne da cor de sangue vivo, Dois buracos da cor do sangue no rosto daquela mulher.
No dia seguinte, ao acordar, no primeiro dia do outono, José quis ver os olhos da sua mulher e quis vê-la vestir-se. Deitado, reparou-lhe no ventre. Aproximou-se e passou-lhe a mão pelo ventre. Era um alto duro, que se lhe erguia sobre o umbigo e que fazia a mão levantar-se quando a passava. Olharam-se e o sol que estava na manhã entrou no quarto. José tratou do gado e foi à vila. No quintal da irmã, sentou-se ao pé do pai. Ficaram assim a tarde e, num momento indistinto dos outros, disse vou ser pai. José, olhou para onde estava a olhar. O pai de José olhou para onde estava a olhar. A tarde suspendeu-se lentamente, alheia a tudo isso.


Nenhum Olhar: José Luís Peixoto, Lisboa, Quetzal, 2014. p. 55-6.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, Ponte de Sor. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (inglês e alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. A sua obra ficcional e poética figura em dezenas de antologias traduzidas para diversos idiomas e é estudada em universidades nacionais e estrangeiras.
Em 2001, recebeu o Prémio Literário José Saramago com o romance Nenhum olhar, que foi incluído pelo Financial Times entre os melhores livros publicados em Inglaterra noano de 2007.
Seu livro A criança em ruínas recebeu o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores para o melhor livro de poesia. E o romance Cemitério de pianos recebeu o Prémio Cálamo Otra Mirada, destinado ao melhor romance estrangeiro publicado na Espanha em 2007. No ano seguinte, recebeu o Prémio de Poesia Daniel Faria com o livro Gaveta de papéis.
Em 2010, seu romance Livro venceu o prémio Libro d'Europa, na Itália. Em 2012, publicou Dentro do segredo, uma viagem na Coreia do Norte, sua primeira incursão na literatura de viagens.
Fonte: Site da UFMG


Mote lido por André Salviano para o encontro do dia 25 de junho de 2019





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