Tragam suas próprias bombas, por Guilherme Preger



Havia escolhido o bairro de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, porque era um dos poucos onde ainda restavam muitas lan houses. Para o trabalho de LIS, lan house era fundamental. Gostava de uma que se chamava PIRATAS INSANOS, na Av Cesário de Melo. Diziam que a PIRATAS INSANOS pertencia à milícia, o que era um ponto a favor. Se a PF tentasse rastrear o acesso, iriam ter que enfrentar as milícias da região que dominavam todas as lojas de internet, assim como toda a rede de fibra óptica local. Além do mais, LIS gostava de se sentir “dentro da barriga do monstro”, no interior da fortaleza do inimigo, traficando informação. Tráfico, aliás, era uma palavra proibida naquele lugar. Milicianos costumavam “apagar” os traficantes locais bem como os usuários de qualquer droga, com exceção de cachaça, cerveja e rivotril.  
Foi direto em sua máquina preferida, em que havia colocado um adesivo do System of Down, e que sabia que era a mais potente, com melhor processador. Colocou seus fones de ouvido no volume máximo, ouvindo B.Y.O.B- Bring Your Own Bombs. No teclado, as letras já haviam apagado de tanto uso, mas el@ não se importava com isso, pois sabia digitar como uma datilógrafa dos velhos tempos. LIS também tinha memória fotográfica.
Puxou o pen-drive e instalou novamente o aplicativo BOMBING THE CYNICS. Todas as vezes era o mesmo ritual, pois o aplicativo se autodestruía a cada 15 minutos. Todo o procedimento teria que ser muito rápido, para não ter que começar tudo de novo. Já tinha o número do celular-alvo na cabeça, digitou um código e pronto: já estava no Telegram. Em geral, os usuários idiotas não sabiam instalar as configurações de criptografia forte. Confiavam no velho e fraco usuário/senha. Também não costumam ativar a destruição automática do histórico.
E então entrou no grupo CLUBE DOS PROCURADORES TEMPLÁRIOS, cujo ícone era um cavaleiro mascarado com uma cruz de malta vermelha no peito e uma lança na mão sobre um cavalo branco. Neste grupo havia 52 integrantes, que iam de procuradores a jornalistas especializados em vazamentos midiáticos.  E então LIS digitou a primeira mensagem no template:
CAMARADAS, UM ESPECTRO RONDA A REPÚBLICA: É O ESPECTRO DO QUILOMBISMO EXU.
LIS deu enter, copiou um arquivo txt que já estava aberto e colou no template:
EXU ESTÁ NO COMANDO E OBSERVA TUDO E TODOS. OBSERVA ESSE GRUPO FALSIFICADOR, ADORADOR DO DEUS MOLOCH. EXU NÃO GOSTOU DO QUE VIU E REGISTROU O CELULAR DE TODOS VCS. EXU VIU, EXU SABE. EXU CONHECE TODOS OS CAMINHOS E É AMIGO DE IANSÃ, DEUSA DOS VENTOS, DAS TEMPESTADES E DOS TSUNAMIS.
LIS deu outro enter e colou uma figurinha de Santa Bárbara, com seu vestido vermelho dando tchau. Depois colou um gif de uma onda que vai crescendo, crescendo e se esparrama e cobre o template de espuma e desaparece. E a seguir colou mais um trecho no grupo de usuários.
EXU É AMIGO DAS ENCRUZILHADAS E AMIGO DE QUEM SEGUE SEUS CONSELHOS. SE NÃO APARECEREM HOJE MESMO NO TELEJORNAL DO HORÁRIO NOBRE PARA ADMITIR QUE FALSIFICARAM O PROCESSO DO TERREIRO PARA PREJUDICAR O PARTIDO DOS QUILOMBOLAS TODO POVO DA BRANQUITUDE GLOBAL FICARÁ SABENDO DE VOSSA AMIZADE ÍNTIMA COM OS MESTRES TEMPLÁRIOS, CUJAS PROVAS DISPOMOS EM FOTOS, ÁUDIOS E TXTS. EXU SABE, EXU VIU. OXALÁ A VERDADE VINGUE E SARAVÁ IANSÃ!
Então LIS introduziu outro gif com nuvens, raios e sons de trovão e fechou o aplicativo, tirou o pen-drive que estava com todos os números do grupo registrados e todo o histórico. Não podia perder muito tempo. Pagou 2 reais pelo uso do tempo, saiu da PIRATAS INSANOS, pegou seu skate, colocou o boné para trás e foi ziguezagueando pela pista engarrafada da Cesário de Melo até a estação de Paciência, onde pegou o primeiro trem. Naquela hora, o fluxo no sentido Centro estava baixo. Um vendedor de apetrechos de celular dentro do vagão passou por perto e lhe sorriu oferecendo seus produtos. LIS examinou um dos fones de ouvido e lhe passou discretamente o pen-drive e, em seguida, ele continuou seu caminho como se não @ conhecesse.
O trem demorou 40 minutos para chegar à Central. LIS percorreu a plataforma, segurando o skate na mão, pegou o metrô, direção Zona Sul, passou por 5 estações e saltou na Glória. Subiu a rua Candido Mendes e entrou no bistrô ARTE GREGÓRA. Juliana a esperava numa das mesas e sorriu quando a viu. Beijaram-se rapidamente: como você demorou, amor! Conversaram animadamente sobre a viagem que iriam fazer para o Oriente, dali a um mês, que LIS aguardava ansiosamente, pois seria sua primeira viagem para fora do país. Isso, se tudo desse certo.
Saíram bêbad@s do bistrô. Juliana @ enlaçou mais forte pelo quadril e lhe disse: hoje você não me escapa, amor. Onde você quer ir nesse dia dos namorados? E LIS lhe respondeu: em qualquer lugar que tenha tv. Preciso ver o telejornal. Você é doid@, lhe disse Juliana, tirando sua franja dos olhos. Mas hoje eu quero lhe fazer todos os desejos. Hoje é a noite da sua libertação. E @ abraçou como se quisesse afundar em sua carne magra de adolescente. Mas LIS afastou de si os braços de Juliana e, segurando-os firme, lhe disse com seriedade: Eu já nasci livre, querida. E riram às gargalhadas, como se tivessem dito uma piada. E desceram então a rua, assobiando em uníssono os versos “Why do they always send the poor?...”.

 (Conto apresentado no encontro de 11/06/2019)

Guilherme Preger é escritor guerrilheiro e hacker literário.  




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