Matilde, por João Mattos



Agradecendo a Wanderson Alves pela cessão de uma de suas inspiradoras fotos

A casa parece chorar, manchas esverdeadas nos muros, rachaduras nas paredes, um cheiro de mofo por toda a parte. A empregada nova – a cada mês tem uma, impossível guardar o nome de ajudantes tão efêmeras – me conduz até o quarto. Sentada na cadeira de rodas, Matilde cantarola uma canção de sua terra: "Debaixo da oliveira / Não se pode namorar / A folha é miudinha / Deixa passar o luar".
Quando me vê – sem me reconhecer absolutamente – pergunta se vou levá-la de volta a Miranda do Douro, onde seus pais a esperam, já não quer ficar presa no castelo da princesa. Olho ao redor, os aposentos da princesa – a princesa que Matilde foi um dia, uma lembrança que se apagou na bruma de sua memória: a romântica cama, com o dossel já meio rasgado e pilastras torneadas que já conheceram dias melhores, as cortinas de seda tisnadas pela maresia, as arandelas de cristal trincadas.
Há quase cinco décadas eu costumava entrar nesta mesma casa, trazido por Nestor, filho de Emerenciana. Emerenciana meio governanta da casa, toda atarefada na véspera das festas. E como havia festas por aqui! Aniversário de Matilde, recepção ao Dr. Altino, que aqui vinha e passava longos feriados... E a homenagem ao Governador, e o jubileu do Desembargador Malheiros...
Matilde deslumbrante, não particularmente bonita, mas com o viço da juventude, o brilho nos olhos cor de violeta, a voz encantadora quando entoava trechos de óperas famosas. E o final das festas na praia em frente à casa, Matilde, a nereida que poderia arrastar para as profundezas do oceano seus apaixonados.
Emerenciana há muito já morreu, Nestor partiu para outras terras. Eu fiquei por aqui, neste canto de praia que já foi a coqueluche da gente bem, mas que agora parece esquecido de todos. Casas decrépitas, mansões abandonadas. E a velha âncora jogada nas pedras do canto da praia, toda enferrujada, invadida pelas cracas, símbolo da decadência deste lugar.
Da família de Matilde, só restou uma sobrinha, que vive no exterior e gerencia seus bens – dizem que não muito honestamente, mas não estou aqui para julgar ninguém. Eu, que moro nas proximidades, cuido do abastecimento da casa e das necessidades de Matilde. A sobrinha me manda dinheiro quando é preciso, mas Matilde tem saúde, não come muito, os gastos são pequenos – é claro que ninguém pensa em restaurar a casa, Matilde não vai durar tantos anos assim.
Entro nos outros quartos, a mesma sensação de abandono, de decadência. O toucador que ela usava, cremes, escovas de cabelo, lápis para retocar as sobrancelhas, tudo velho, tudo inútil, encardido, jogado. Abro os armários, fantásticos vestidos de baile, roupas finíssimas. Mas amareladas, envelhecidas. Em tudo, o cheiro do passado, a solidão, o silêncio.
Apenas a voz de Matilde, vinda do outro quarto: "Debaixo da oliveira / ..."
Subo as escadas que dão para o terraço, acima da casa. Do alto, vejo toda a nossa vila. Barcos abandonados, casas fechadas, a vila parece um túmulo. Apenas o tranquilo bater das ondas, uma doce litania a marcar o fim das coisas, à espera do golpe de misericórdia.
Algo me aperta o peito. Que vai acontecer quando Matilde se for? Tudo se esvai em nossa vila, percebo que a única vida que ainda pulsa ali é a dela. Caótica, decrépita, Matilde ainda cantarola divertida, aplaude a comida que lhe trazem, festeja as poucas pessoas que entram na casa. A vila agoniza, a casa agoniza, eu mesmo agonizo. A umidade e a maresia tudo corroem. Apenas Matilde, a cantar alegremente, sua infância em Miranda do Douro, o balido das ovelhas, o cultivo das videiras, as fragas íngremes de seu Trás-os-Montes natal.
Também eu quero esquecer esta vila, esquecer esta vida. Meu trabalho como professor, meus alunos desinteressados. Minhas crises, minhas idas à clinica psiquiátrica, minha duradoura penúria.
Matilde pode ser uma solução. Partiremos um dia os dois num navio, rumo à boa terra. De Lisboa, um comboio nos levará a Miranda do Douro. Na estação, estará seu pai, a charrete à espera de levar nossas malas. Seguiremos por um caminho emoldurado de giestas – será maio, no esplendor da primavera. A casa se mostrará numa curva da estrada, uma casa sólida, cortinas de renda nas janelas e um galo de ferro na cumieira, com uma seta dirigida para o Norte, a ajudar seus moradores a manter o rumo bom da vida. A mãe deve estar lá dentro, a preparar uma boa refeição, um bacalhau com grãos ou um arroz de pato. Já deve ter nos ajeitado os quartos, camas confortáveis com lençóis de flanela para as noites frias daquelas paragens.
Ao ouvir o trotar dos cavalos, o cachorro virá correndo, a saudar alegremente a rapariguinha que com ele brincava. Os anos se foram mas ele ainda estará lá, jovial e cheio de energia, o tempo dos sonhos não anda em passo igual ao do áspero tempo da realidade.

João Bastos de Mattos, nascido de Capivari-SP no inverno de 1952, é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, mas tem dificuldades para trocar uma simples lâmpada. Trabalhou por mais de 30 anos na Petrobrás. É escritor diletante, tendo vencido por duas vezes o Concurso de Contos Petros.

Lido no Clube da Leitura – RJ
11 de junho, 2019




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