Natureza Morta, por José Fontenele

Mesmo que as sagradas escrituras esclareçam o contrário, a mulher nasceu foi no subterrâneo. Certo ponto chateou-se. Deixou para trás as fissuras do Hades e decidiu subir de mansinho à superfície. A ganância pelo horizonte fez com que a feminina encontrasse um rapaz adormecido em um jardim frutífero e animais nada peçonhentos. Experiente na arte da sobrevivência, a mulher localizou rapidamente os sexos e as formas entre eles e resolveu permanecer como cobaia no jardim primaveril dando-se por desconhecida dos fatos; como se nascesse naquele instante sem memória de suas impurezas ou desmazelas.
O momento era favorável à nova moradora: Adão procurava alguém que representasse a função dele de ser mais inepto entre os habitantes do jardim; e deus não queria perder discípulos, afinal se eliminasse a criatura recém-chegada abortaria pelo menos metade de seus atuais e futuros fiéis. Ela sorriu de forma indiferente, fez-se tonta e desajeitada, e recebeu o nome de Eva. Nós, os outros, em deslumbramento, ficamos enfeitiçados porque nascemos naquele jardim virgens quanto à natureza do suave corpo alheio.
E com tanto embelezamento, tanta feitiçaria, não ficamos verdadeiramente apoquentados ou turrões quando ela nos contou do incidente com o réptil. Até porque, imagine qual pecado a serpente, nascida naquele jardim introdutório e pleno de beleza, ensinaria à Eva? Desconfiávamos que fora o contrário; quando o réptil sibilou da macieira e projetou o corpo em mínimos e rasteiros solavancos de microscópicos pés entre os galhos úmidos, banhados ainda com o recente astro solar, desejando tentar a pretensa inocente com os avanços recentes do pecado, foi a feminina que tratou de informar ao animal que aqueles ensinamentos eram ultrapassados. Aqueles mistérios não eram tão mistérios assim para a libido masculina, Eva contou. Por isso, temos certeza, foi ela que ensinou ao réptil as novas práticas e mandamentos, os enlaces, as poções que farfalhavam nos caldeirões das reentrâncias da terra onde os recém-diabos eram alfabetizados na luxúria permanente do corpo. Quando a serpente eriçou-se, ávida por todas aquelas posições e fórmulas, danças e segredos, a mulher exigiu um sacrifício, e é por isso que hoje o réptil não tem mais os pequenos pés que lhe aceleravam a movimentação e sobrevivência.
Quando veio o castigo divino, a serpente, como sabemos, não tem aquele sorriso desconcertantemente belo que somente o feminino ostenta, o réptil não tem aquele rosto desanuviado como se adivinhasse constantemente as nuvens ou ficasse a se proteger das imperfeições do pecado por simples falta de inteligência. Por não ter essas qualidades que tão bem vestem o feminino, deus puniu o réptil e exigiu de Adão uma audiência – que deus é muito importante e só assunta outros com a formalidade de uma grande empresa. Adão, agora enternecido por não ostentar mais as burrices que o qualificavam como primeiro habitante, falou do pecado como cá temos os amigos que nos procuram em quaisquer ocasiões para desabafar a vida, que é um fardo. Por demonstrar toda essa parte de sabedoria antes escondida – deixando claro, desde o início, que a consciência por vezes é nosso punhal –, Adão acabou por condenar a mulher justamente porque sabia que do casal era ela quem receberia qualquer punição e permaneceria raiz de si mesma; como já persistia nas entranhas da terra, no solo seria tarefa das mais amenas. Conclusão: foram separados e expulsos do jardim primordial Adão, Eva e os animais.

Prólogo do romance "Natureza Morta" (Moinhos, 2019)

Mote para o encontro de 03/09/2019
José Fontenele nasceu no Piauí. É jornalista formado pela  Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), escritor e organizador cultural. Autopublicou seu primeiro livro, “O ralo da consciência”, em 2014. Está entre os coordenadores do Clube da Leitura RJ e o Clube de Leitura ZO (RJ). Participou da coletânea “Clube da Leitura Vol. IV” (Rubra), como escritor e organizador; e tem um conto na coletânea “80 anos, devagarinho — Conta forte, conta alto”, publicada pela Festa Literária das Periferias (FLUP), em homenagem à obra de Martinho da Vila. Escreve sobre Cultura e
Literatura para a revista literária “Revéstres”. Trabalha na empresa de ghostwriting e biografia “Álbum de memórias”. Mora na cidade do Rio de Janeiro.




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