Viagem sentimental ao Japão , por Paula Bajer Fernandes


Entrei em um avião duas vezes. Na primeira, não olhei para fora da janela. Perdi a oportunidade de ver as nuvens de perto. Na segunda, foi diferente. Fui. Fui e voltei.
Viajar é um movimento que ainda não consigo fazer espontaneamente. Meu corpo não gosta de ficar longe de casa.
Só que me sinto atraída pelo movimento imaginário de mudar. Para outro continente, por exemplo. Outro continente de mim.
Deslocamentos do espírito. Ou deslocamentos mentais.  Enfrentei. Parti. Não queria tanta distância.
As coisas não acontecem como a gente espera.
Tudo começou quando me senti estrangeira em minha própria casa.
Eu não pertencia. Sempre foi assim. Nunca pertenci.
E me fechei nos estudos, no computador, nos games, nas leituras, nos relatos de viagens.
Minhas leituras me transportaram. Viagem ao centro da terra. Volta ao mundo em 80 dias.
Viagens de Gulliver. Encontrei as viagens de Gulliver. O livro me inspirou.
Fiquei com vontade de ir para lugares imaginários.
De conhecer extraterrestres, seres com nomes diferentes. Eles passaram a ser normais para mim.
Como os astronautas. Os argonautas.
Não deu para passar a vida toda entre letras escritas e pensadas, com poucos amigos e poucas palavras ditas e ouvidas.
Não deu para passar a vida com personagem de uma nau europeia encantada com a nossa natureza.  Não deu para passar a vida como Robinson Crusoé.
Fui obrigada a procurar emprego. Circunstâncias.
Eu era inexperiente, tudo que eu fazia era ler e ficar na frente do computador.
Antes, minha família preferia que eu ficasse em casa.
Depois, quis que eu saísse de casa. Os pais se surpreendem quando a gente cresce. A gente se surpreende quando cresce. Estranhamento radical.
Eu não tinha amigos,reais ou virtuais.
De uma hora para outra, meu pai decidiu que eu devia trabalhar.
Ele se aposentou e percebeu que nós dois dentro de casa não dava certo. Ele queria o ar só para ele.
Meu pai pressionou. Minha mãe pressionou.
Atividade remunerada.  Tarefas rotineiras.
No início, eu só queria trabalhar. Talvez fosse bom.
Sair de casa todos os dias no mesmo horário.
Ter colegas de trabalho. E um salário.
Depois de enviar uns vinte currículos para empresas que trabalhavam com línguas, letras, recursos humanos, comunicações, serviços, encontrei uma que estava precisando de alguém que trocasse dedicação e empenho por pouco dinheiro.
Estacionei em uma agência de viagens.
Fui entrevistada pelo próprio dono – agência pequena.
O nome dele era, ainda é, Marcos Paulo. Mais velho, uns 45. Quase bonito. Pelo menos magro.
Ele quis saber se eu estava acostumada a viajar. Foi a primeira pergunta.
Aí eu disse, sim. Não menti.
Tinha viajado por lugares reais e fictícios. Eu sabia tudo ou quase tudo sobre os lugares inexistentes criados na literatura.
(...)
Então, quando o chefe da agência perguntou, na entrevista, sobre experiências anteriores de trabalho, contei uma viagem fictícia para a Europa.
Paris, Londres, Roma. Capitais. Tinha lido tanto. Como se.


Rio de Janeiro: Editora Apicuri, 2013

Mote lido por Andrea rodrigues para o encontro de 20/08/2019





Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz