Trânsito - Daniel Russell Ribas



Trânsito


O relógio grita. Falta pouco. Precisaria de, pelo menos, meia hora. Não almocei. Puta merda, já tá na metade da tarde. Ainda não escrevi o texto pra noite. Não consigo pensar em algo digno de nota. O porteiro insiste em correr como um cracudo em abstinência. Vou no fast-food. Há quantos anos que não vou num desses troços mesmo? O que vai querer, senhor? Juventude e sabedoria eterna. Vai querer fritas por mais 30 centavos? Se me der mais 30 minutos aceito. Ai, meu estomago, tou passando mal. Agora me lembrei porque não costumo comer essas coisas. Tenho que ir ao banco. Quase no limite pra fechar. Que tipo de lugar esquecido pelo cosmos não tem uma agência por quarteirão? Continuar é necessário, pagar a conta mais ainda. Escrevo sobre um cara que precisa pagar uma conta? Sinto muito, senhor, deu o expediente. Como assim, eu tenho ainda 30 segundos! Só amanhã, senhor. 25 agora! Daqui a pouco, tenho curso. Mas antes preciso passar na casa de um amigo e pegar o livro que emprestei. Sem o livro, me fodi mais do que jornalista cobrindo manifestação. Aquela porrada doeu. Vou escrever um conto sobre jornalista que apanha em passeata. Não adianta, todo mundo odeia jornalista, vão me chamar de vendido. Para qual lado depende do gosto do freguês. Se, ao menos, alguém me comprasse não teria problema em pagar os juros da multa da conta atrasada. Como assim o cara não tá em casa? Eu preciso do livro para a porra da prova! Não, eu não posso esperar! E dai que o ônibus bateu num carro? Saio com os pneus arriados. Já sei, vou escrever sobre um cara que está literalmente cagando e andando e a merda cria vida, sai da bunda e bate num ônibus. Burroughs ficaria orgulhoso. O jornalista vai cobrir, apanha da merda e... o telefone toca. Merda, olha a hora! O curso começa em... Oi, mãe! Eu não sei onde tá o pai. Eu não moro aí há 4 anos, como vou... Eu também não sei onde tá a chave da porta de casa. Você perdeu e se trancou do lado de fora? Ora, espera o pai voltar, espera Godot, espera a morte da bezerra, espera chover canivete... Não, mãe, eu não matei uma bezerra com canivete. Desligo. 5 minutos. Tou ligadão. Acho que borrei as calças. Ouço Bezerra da Silva. Onde tem um canivete para cortar os pulsos? Não tem aula hoje? O professor não vem? Tá preso no trânsito? Um ônibus bateu no carro dele? Burroughs ri de mim no inferno. Já sei! Vou escrever sobre Burroughs conversando com Bezerra da Silva sobre funções intestinais. Um jornalista vai cobrir, mas é impedido por uma manifestação de xisburgueres. Brilhante! Pego o ônibus. Está engarrafado. Merda. Chego a tempo. Quem tem conto? Eu! Cadê? Não escrevi, não tive tempo. O celular toca. Vou ao bolso. Perdi as chaves de casa. Ouço uma risada.

Conto escrito para o encontro de 18/ 08/ 2015


 


Daniel Russell Ribas é membro do “Clube da Leitura” (http://clubedaleiturarj.blogspot.com.br), que organiza evento quinzenal. Escreve no blogue “Entre a rua e o meio fio” (http://multiconto.blogspot.com.br/), em parceria com o poeta Henrique Santos. Organizou as coletâneas “Para Copacabana, com amor” (Ed. Oito e meio), “A polêmica vida do amor” e “É assim que o mundo acaba”, ambos em parceira com Flávia Iriarte e publicados pela Oito e meio, e “Monstros Gigantes – Kaijus”, em parceria com Luiz Felipe Vasquez, pela Editora Draco. Participou como autor dos livros “Clube da Leitura: modo de usar, vol. 1”, “Lama, antologia 1” (publicação independente), “Clube da Leitura, volume II”, “Sinistro! 3”, “Ponto G” (Multifoco), “Caneta, Lente & Pincel” (Ed. Flaneur), “Clube da Leitura, vol. III”, “Veredas: panorama do conto contemporâneo brasileiro” e “Encontros na Estação” (Oito e meio).

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