O inusitado encontro de Maria e João - Morena Madureira
O inusitado encontro de Maria e João
Maria era uma mulher problemática. Nasceu com uma
disfunção genética que a fazia sentir todas as dores doídas nas pessoas à sua
volta, em um raio de 100 metros. Não só dores do corpo, como torcicolo,
cefaleia, cãimbra, dor de dente, de barriga, de garganta, de cabeça, de coluna,
de ouvido, mas também as dores da alma, como luto, medo, arrependimento,
melancolia, desespero, saudade aguda, dor de cotovelo e todas as outras.
Por saber de sua condição, Maria evitava passar
perto de locais notadamente repletos de pessoas doloridas, como hospitais,
farmácias, casas de repouso e cemitérios, e buscava ficar sempre por perto de
crianças e suas dores primárias e passageiras. Por isso escolheu ser monitora
em uma creche.
Mesmo convivendo durante o dia com os pequenos e
suas dores toleráveis, como dor de estômago, gripe e joelho ralado, a escolha
não a impedia de vir a sentir dores mais complexas no cair da tarde, quando
pegava o ônibus lotado de volta para sua casa. Era no aperto do coletivo que o
tormento de Maria começava, pois ali sentia cólicas, tonturas, azias, enjoos,
pontadas, artrites, além, é claro, das tristezas das mais variadas
intensidades.
Mas, por ironia do destino, esse danado, foi
justamente nesse local que mais sofrimento causava ao corpo e à mente doídos,
mas já um tanto calejados de Maria que ela encontrou, literalmente, sua cara
metade. Seu nome era João, e uma certa noite, em meio ao trânsito inebriante da
metrópole cinzenta em que moravam, sentou-se ao lado de Maria no ônibus.
Ela, sensível como era, não estranhou apenas a
ausência de dores que emanava da presença daquele homem, mas também o fato de
ele estar constantemente com um sorriso no rosto que parecia fixado ali, na
mesma posição. Intrigada, observou-o por um longo instante e notou que a cada
vez que um outro passageiro ria ou parecia alegre por algum motivo, ele sorria
ainda mais, às vezes chegando a soltar algumas gargalhadas.
Sim, João era seu contrário. Sentia todas as
alegrias do mundo. Felicidades pequenas ou grandes num raio de 100 metros, como
por conseguir uma promoção, arrumar um namorado, ouvir uma piada, um galanteio,
receber um aumento, um prêmio, um presente, todas essas sensações eram sentidas
pelo homem, que de tão feliz não sabia o que era tristeza e, portanto, não se
emocionava mais com nenhum dos sentimentos positivos que recebia.
Às vezes, em algumas ocasiões do ano, seu rosto doía
de tanto sorrir, e por essa razão ele odiava carnaval, Natal, réveillon, Dia
das Crianças e dos Namorados. E, ao contrário de Maria, achava os cemitérios
uma zona de conforto para sua existência, um local ideal para descansar do peso
das felicidades alheias, e por essa razão escolheu ser coveiro.
Naquela noite, ao encontrar Maria, ele também sentiu
algo estranho vindo do corpo dela, uma sensação de que algo se neutralizava,
encontrava seu balanço, e por alguns instantes, ao olhar para ela e vê-la tão
sisuda, tensa das dores que sentia, encontrou o alívio que precisava para
deixar de sorrir por um minuto ou dois.
Inicialmente sem trocar muitas palavras, os dois
passaram a se procurar diariamente entre os rostos anônimos do coletivo, e
depois de ficarem amigos, ficaram mais que amigos, namorados, noivos, e
finalmente se casaram, sem festas (ele não toleraria), nem cartórios (ela não
suportaria). Viveram juntos até o fim de seus dias, nem sempre felizes, nem de
todo tristes, como a vida costuma ser.
Conto escrito para o encontro de 18/ 08/ 2015
Morena Madureira é daquelas que escolheu o jornalismo e hoje não entende
ao certo por quê. Em meio às impermanências da vida, tem certeza apenas da
devoção às palavras, sejam elas lidas, escritas ou pronunciadas. Ainda não
publicou nenhum livro. Mas também não teve filho nem plantou árvore. Ela
acredita que tem muito chão pela frente.
Ficção com sabedoria! Sem pensamento mágico, final trágico ou feliz, surpreende com o real inusitado. Morena Madureira, não tem livro publicado, não teve filho e nem plantou árvore, mas tem talento e maturidade para fazer tudo Já!
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