Mote do encontro (18 /08/ 15)



mote lido por Luiz Alberto Benevides


A primavera entra pelos pés




Prazo



ela só não queria morrer antes do prazo certo. havia um prazo. a ser dado por ela mesma no futuro e que só saberia no momento de. a gente sempre sabe, era o que ela dizia quando lhe perguntavam. intuição? não, ela respondia, cansada de mesmices, intuição é explicação rápida, rasa, raquítica. por causa das mesmices e de muito raquitismo, saiu do facebook. não tinha mais tempo, nem paciência, as redes sociais reproduziam em excesso a vida ao vivo, facebook era sua agrura, vida social era seu horror. para que mais? para que tanto? não, não queria cansar dos amigos mais do que poderia se cansar deles na vida real, saiu do facebook, pôs-se a escrever poesia ou, melhor, pôs-se a escrever o que torcia (dedos cruzados) para que poesia fosse. no caderninho azul que denise havia trazido para ela da inglaterra, fez um diário da dor, esse sim nada poético. mas cru. um diário milimétrico, obsessivo, minucioso. espantoso. ela perquiria sua dor, passo a passo. depois, toda sexta-feira, lia o inventário em letra de mão. criava a si mesma por intermédio dos itinerários da dor física. vez ou outra, acordava no meio da noite resfolegando. teria corrido alguma maratona num desses pesadelos cujo conteúdo a gente esquece mas cujo clima permanece? o tom do pesadelo impedia que adormecesse novamente, às vezes se levantava. lavava as mãos, sem pressa. na sala, acendia a luz, olhava ao redor. o caderno azul sobre a mesa, as dores ali encerradas. só não queria morrer antes do prazo certo, mas aquelas dores, todas elas, agrupadas, separadas, intermitentes, insistentes, dores que embaralhavam o entendimento sobre seu próprio corpo, que construíam, pacientemente, sua nova identidade, todas elas faziam com que temesse um adiantamento qualquer, um encurtamento do prazo. contanto que fosse deliberado, tudo bem. mas assim, à sua revelia, fora de seu controle, isso não estava certo.


PIZZINGA, Vivian. A primavera entra pelos pés. 1ª edição. Rio de Janeiro: Editora Oito e meio, 2015.




Vivian Pizzinga é autora de “Dias roucos e vontades absurdas” e “A primavera entra pelos pés”, ambos pela Editora Oito e meio. É também psicóloga. Tem um gato chamado Vuvu. No outono e no inverno, toma chá para esquentar as mãos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram