eutanásia - André Salviano
eutanásia
estava
triste. ensimesmada. lembrou de quando ia na casa da vó ceiça e era recebida
com aquele delicioso feijão caudaloso, ovo frito na banha e arroz. ou da mãe
ligando pra saber se estava tudo bem, e de como estava a terapia. sentia-se
fraca. pensou tanto sobre qual seria a melhor opção e só uma se mostrava
eficaz. o que os amigos iam pensar, e a família, vó ceiça não passaria por
isso, não está mais entre nós, mas e o tio augusto. meses se passaram desde que
começou a ler artigos sobre o assunto. cada vez mais abatida. seu pai talvez
sequer ligasse quando recebesse a notícia, os primos iam tentar convencê-la do
contrário. o prazo. decidiu que trabalharia em cima de um, e de que não
arredaria o pé, era a vida dela, porra. aliás, quantas vidas né. essa era uma
das angústias, a falta de unidade, ser tão fractal, identidade se perdendo. não
tinha mais como viver assim. por isso foi preparando o terreno gradativamente,
desde que leu o artigo que sanou todas as suas dúvidas. faria. seria doloroso,
mas não voltaria atrás. esperava pelo melhor momento pra anunciar. a quem
primeiro. mãe, irmão, primos, namorado, amigos, tio augusto. não sabia, será
que anunciava a todos de uma vez só. sorriu de nervoso.
foi como
imaginara, chiadeira de tudo quanto foi lado, pediram para que não fizesse
isso, mas estava dentro do cronograma, foi um comunicado, não um pedido de
permissão ou uma pesquisa, tudo ocorreria dentro do prazo estabelecido. ponto
final. só a ana, amiga do trabalho, entendeu e deu força. a mãe estava
desconsolada. o pai não disse nada. os primos não sabiam o que dizer pra
dissuadi-la. o namorado a abraçou bem forte e mesmo com dificuldades,
concordou. já o tio augusto de tão gente boa que era, apenas perguntou a ela se
tinha certeza.
o dia
chegou. dezoito de agosto de dois mil e quinze. acordou se sentindo uma nova
pessoa. ia poder ser mais livre, pensou. e tomou o café da manhã repetindo o
pão francês, que quentinho derretia a manteiga. no demorado banho, cantava
apesar de você aos berros. pegou as chaves, entrou no carro e dirigiu até a clínica.
passou pela recepção sem falar com ninguém, já na sala, suspirou. é agora,
repetiu em voz alta, as mãos trêmulas. se encaminhou até a mesa, sentou, olhou
para tela do notebook.
vamos começar
por onde tudo começou, disse. colocou sua arroba, a senha, foi até o canto
superior direito da tela, clicou na foto em miniatura, depois em configurações,
no final da tela um link, desativar a minha conta, clicou. foi levada a outra
tela,
Isso é um
adeus?
Tem certeza
de que não quer reconsiderar esta decisão? Foi algo que nós dissemos?
depois de ler
que sua conta ainda poderá ser reativada no período de trinta dias, apertou
convicta o botão de desativar. passou ao instagram, foursquare, swarm, google
plus, snapchat, o tinder fora excluído meses antes. deixou o mais doloroso para
o fim, excluir a conta do facebook.
Se achar que não vai usar o Facebook
novamente e desejar excluir sua conta, cuidaremos disso para você. Lembre-se
que você não poderá reativar sua conta ou recuperar o conteúdo ou as
informações adicionadas.
clicou em excluir minha conta, não
seria uma simples desativação. ela estava se desligando do mundo das redes
sociais.
leve.
fechou a tampa do notebook pessoal,
abriu o de trabalho, ligou para a secretária e disse serena, ana, pode mandar
entrar o paciente das dez.
Conto
escrito para o encontro de 18/ 08/ 2015
André Salviano é formado em Letras
pela UFRJ. Já participou de algumas antologias, prosa e poesia, mídia impressa
e eletrônica, como o Prêmio UFF de Literatura 2009, categoria conto, e o e-book
Não é só por 20 contos (http://www.skoob.com.br/files/ebooks/20-contos.pdf).
É um dos fundadores do blogue Confraria dos Trouxas (confrariadostrouxas.com.br),
onde escreve todas as terças desde 2010. Admirador da alma feminina. Torcedor
do Flamengo. Sempre que pode bate ponto no Maraca. Gosta de suco de melancia e
do pôr do sol no Arpoador. Não dispensa um chopinho regado a bom papo. Mora em
Laranjeiras, mas vive na Lapa.
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