Equívoco - Vivian Pizzinga



Equívoco

resolveu retomar o diário que havia abandonado, o caderno azul, agora com outros temas, quem sabe o detalhamento do tempo, quiçá o entendimento da dor, ou ainda a caminhada para algo que termina, os temas difíceis que ela jamais conseguira compreender. começaria por aquele dia de sol inesperado em pleno agosto. começaria pelo banal, ou pelo que parecia banal. aquele dia era um dia como qualquer outro, isso se olhado a olho nu, mas ela sabia, e escreveu isso, a primeira frase da retomada do diário, escreveu que nunca se deve tomar as coisas pelo modo como são vistas a olho nu. pensou, em seguida, que a cada dia, menos um dia. estamos sempre caminhando para algum final. queria entender o tempo, mas só se acercava de seus simulacros, e sabia disso. talvez escrevendo sobre ele no caderno azul tudo fizesse mais sentido. era como se, ao fazê-lo, pudesse destacar e transformar em objeto aquela relação com o tempo. e o tempo agora a pressionava de modo diferente. ela sabia que não havia muito, não havia tanto, não havia tanto quanto antes. ela sabia que estava sempre em desvantagem e era sobre isso o que pretendia escrever, a desvantagem que vai se tornando a característica principal de todas as vidas. começaria descrevendo o dia. o calor atípico de agosto. o interesse minguando. a vontade de trancar todas as portas, abrir as janelas só na hora da ventania. a vontade de preparar um chá. a cada chá, menos um chá, a cada sábado, menos um sábado. a cada dor, menos uma dor. coçou a cabeça como se estivesse encurralada. ela sabia que aquele diário, aquelas primeiras páginas, nunca seriam interessantes, nunca seriam contáveis, talvez jamais fossem dignas de nota. nunca fariam ninguém rir. era um diário quase indizível, quase incontável, que perseguiria as palavras e as cenas ideais para apreender o que era uma junta esfacelada, um corpo inteiro doído, uma vontade de quase nada. e, ela lembrou, e escreveu, a cada vontade, menos uma vontade. não, talvez aquele diário não devesse ser retomado, uma besteira tentar apreender o que quer que fosse, a olho nu ou através da escrita. seria um erro. um equívoco grave. a cada equívoco, menos um equívoco. e seria sempre em vão escrever. aquele diário seria gratuito, a troco de nada, pois era, novamente, o diário milimétrico do tempo, de seu simulacro, do encurtamento de qualquer vontade. e ninguém queria saber a fundo sobre o encurtamento das vontades. ninguém, ninguém mesmo, queria ver o equívoco a olho nu.


Conto escrito para o encontro de 18/ 08/ 2015




Vivian Pizzinga é autora de “Dias roucos e vontades absurdas” e “A primavera entra pelos pés”, ambos pela Editora Oito e meio. É também psicóloga. Tem um gato chamado Vuvu. No outono e no inverno, toma chá para esquentar as mãos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Vamos comprar um poeta, por Afonso Cruz

Homens não choram

Cultura: uma visão antropológica, de Sidney W. Mintz