Graça - Vivian Pizzinga
Graça
Foi
ali, exatamente ali, que os conheci. Do outro lado da rua, eu apontava para o
prédio que havia sido a livraria que frequentei por alguns anos, até que
mudasse de bairro. Meu filho de trinta anos estava comigo, engajado naquela
espécie de jornada para conhecer os lugares que haviam sido importantes em
minha juventude. Eu havia mostrado a escola onde estudei, as casas dos amigos
que moravam próximos a mim, a faculdade, o bar onde havia conhecido o pai dele,
e meu filho, interessado, me fazia perguntas, esboçava curiosidades,
verbalizava estranhamentos. Através de suas indagações, eu ia me lembrando de
situações mínimas que havia vivido, problemáticas que me fizeram perder noites
de sono, confusões hoje risíveis. Se eu fosse escrever uma autobiografia, disse
a ele, aquela livraria e o grupo que formamos seria, certamente, o capítulo
mais longo.
Atravessamos
a rua, entrei na transversal e constatei que, trinta anos depois, ao menos o
Pavão Azul ainda existia. Vamos sentar aqui, eu disse. A longa conversa da geriatra
sobre meu diagnóstico havia mudado seu comportamento comigo: ele se tornara
mais paciente e topara a ideia de me acompanhar num itinerário emocional por
territórios importantes da minha vida. Sei que vou perder a memória, sei que as
fotografias que guardei por todos esses anos não me dirão nada em breve, nada
vai sobrar do que fui, mas quero compartilhar o que me restou com alguém à
guisa de fabricação de alguma memória contínua. Meu filho aquiesceu e
procuramos um lugar para sentar. Ele pediu sua Serra Malte de praxe e minha
coca com gelo e limão, e enquanto os pasteis de queijo não vinham, falei um
pouco do clube da leitura.
E
esse grupo?, ele perguntou. O que vocês faziam? Qual era a graça? Havia graça?
Veja,
comecei a dizer, para pessoas como nós, só aquilo parecia ter graça. Se você
quisesse definir a graça a um povo de outra cultura que não tivesse esse
conceito ou mesmo uma palavra que designasse essa noção, você poderia usar o
clube da leitura como exemplo didático do que é graça. E por quê?, ele
perguntou. Veja, eu ia dizendo, nós éramos estranhos, esquisitos, precisávamos
de um terreno comum de esquisitice e estranheza, mas a nossa não era qualquer
esquisitice. Nos reuníamos quinzenalmente, às terças à noite, para escrever
contos, falar de literatura, ler prosa em conjunto, tínhamos nossas profissões,
mas vivíamos, essa é a verdade, dentro de um mesmo limite. Qual?, ele quis
saber. O mesmo que o seu: levávamos nossas vidinhas nos esforçando para
sustentar personagens e funções cabíveis em uma sociedade típica de século XXI,
obedecendo a regras, evitando surtos mais drásticos, nos equilibrando dentro de
uma dramaticidade diária que não fosse excessiva. Acho que nós nos guardávamos,
muito bem guardados, não para quando o carnaval chegasse (mas até), mas para
cada terça à noite em que iríamos nos encontrar. Tenho certeza de que se
perguntássemos a cada um de nós como se sentia na terça de manhã, a resposta
seria “eufóricos!”, diríamos “hoje tem clube” e só por essa razão
trabalharíamos com mais disposição e generosidade. Havia uma recompensa no fim
do dia, então valeria a pena ser sério sem sofrer nas oito horas que precediam
o encontro. Meu filho estranhou, “Ser sério sem sofrer?”, e eu tentava
explicar, A vida é uma boa de uma bosta, eu nunca quis te dizer isso porque
você era muito novo, não seria adequado uma revelação desse porte antes do
momento necessário de tê-la, mas agora posso dizer francamente que a vida é uma
boa bosta: quando acordamos às seis, às sete ou às nove da manhã para ir ao trabalho,
isso não é fácil nem natural, temos que nos encaixar em horários, em ritmos,
temos que sorrir antes da nossa hora certa, e cada hora certa de sorrir não só
é muito individual como varia de dia para dia, e temos que falar antes da nossa
hora certa de falar, dar bom dia antes de acharmos o dia bom, antes de queremos
o dia, antes de querermos o dia bom, e temos que conviver com pessoas que
preferiríamos não ver nunca. Por isso aquela livraria nos salvou, só por isso.
Era o lugar que nos acolhia.
Sei,
ele disse, e chegaram nossos pastéis. Ficamos algum tempo em silêncio,
saboreando. Após terminarmos a comida, eu disse que no começo éramos tímidos e
desajeitados. Essa é toda a graça do começo. Se quisermos definir o que é a
graça para alguém que nunca tenha ouvido falar disso, podemos falar de começo,
qualquer começo, e do que quer que seja. Bem, mas aí o tempo passou e vieram as
brigas, os amores, as fofocas, algumas intrigas, o grupo foi se renovando,
alguns sumiram, chegaram novas pessoas, havia os sazonais que frequentavam por
algum tempo e sumiam por outro para depois regressar, gerações deram lugar a
gerações, embora sempre houvesse aqueles que formavam o núcleo duro e imutável
do grupo, aqueles que estavam desde o começo e que não abandonavam nossos encontros.
E
quem eram? Onde estão as pessoas que formavam o núcleo duro e imutável do
grupo?
Ah,
meu filho, eu disse com um longo suspiro, a voz falhando, a lágrima enroscada
na garganta. Essa história eu vou terminar quando formos a Botafogo. Vou te mostrar
para onde a livraria foi quando se mudou. Ali a graça adquiriu novos aspectos.
Ali a graça se tornou um conceito mais rebuscado, mais difícil de explicar
àquele povo que não possui esse conceito. Mas estou cansada agora. Vamos pedir
a conta e, daqui a quinze dias, é para lá que iremos. Quero te mostrar que fim
levamos todos nós.
Conto
escrito para o encontro de 07/07/2015
Vivian
Pizzinga é autora de “Dias Roucos e Vontades Absurdas”, pela Editora Oito e
Meio. É também psicóloga. Tem um gato chamado Vuvu. No outono e no inverno,
toma chá para esquentar as mãos.
Grande !
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