Horizonte - Walter Macedo Filho
Horizonte
Quase
sempre, o conhecimento está para a erudição assim como uma boa noite de sono
está para o cochilo no meio da tarde. Certa vez, Juliano ouviu algo parecido e entendeu
que seu pai era, sim, um erudito. Professor universitário, o velho
transformou-se aos poucos na sombra eterna que pairava sobre a vida de penumbra
de Juliano. Essa era a maneira que o rapaz se via, desde que passou a se
entender como gente. Mas, “ver a si mesmo”, neste caso, seria quase uma “figura de linguagem”... uma
“metáfora”... um “modo de dizer”. É que, por volta dos 12 ou 13 anos de idade,
Juliano teve um “probleminha”. Seu pai o cobrava diuturnamente para que
transformasse a leitura de livros em um hábito, em um momento de prazer e não
somente em obrigação. Juliano até que tentou. Tentou muito. Tanto que, nos
meses finais de um daqueles anos de juventude, quando os dias de prova na
escola se acumulam e se aproximam, o menino varou noites lendo, lendo, lendo...
em particular, nos dias que antecediam a prova de português.
Na
manhã do dia da prova, a mãe de Juliano, como era de costume, foi chamá-lo para
se levantar. E, como era de costume, Juliano reclamou. Mas reclamou diferente.
Reclamou dizendo que era cedo demais, porque ainda estava muito escuro. Em um
primeiro momento, sua mãe não deu grande importância ao comentário do menino. Mas,
ao chamá-lo novamente, percebeu que Juliano insistia em dizer que ainda era
noite. Juliano estava cego.
O
professor universitário fez o que pôde e o que não pôde. Levou Juliano aos
melhores especialistas do país e do exterior, mas o diagnóstico era sempre o
mesmo: em termos físicos e fisiológicos, tudo está normal com o menino e seus
olhos.
A
culpa passou a se infiltrar nos pensamentos do professor que, aos poucos, foi
definhando e perdendo o interesse pela profissão, pelos alunos, pela família e,
por fim, pelos livros. Sua imensa biblioteca doméstica, que até então era um
organismo vivo na casa, foi deixando de ser visitada, acumulou poeira, traças
se alojaram... Alguém um dia trancou a porta do cômodo e a chave nunca mais foi
encontrada.
Com
a morte do velho, as vidas de Juliano e de sua mãe eram empurradas de um dia
para o outro. O silêncio do rapaz ensurdecia sua mãe, que implorava por algum som
vindo de outro ser humano; mendigava por um comentário; daria a vida por uma
conversa que, no final, tivesse reunido mais do que dez ou doze palavras.
Juliano
então tomou a decisão. Perguntou à mãe se tinha direito às coisas deixadas pelo
seu pai. Ela afirmou que, óbvio, tudo pertencia aos dois. O rapaz propôs abrir
mão de todo o resto se pudesse ficar com as centenas de livros deixados pelo
professor. Só então ela lembrou-se do cômodo trancado. Ficou quase feliz com o
pedido de Juliano, que ainda exigiu garantias de que o acervo pertenceria
somente a ele. Assim que lhe foi transmitido formalmente todo o poder sobre a
biblioteca, Juliano saiu de casa.
Passadas
algumas horas, retornou de carona em um furgão, de onde desceram três homens.
Juliano entrou com o grupo, observado por sua mãe, atônita e muda. Um deles
conseguiu abrir a porta do cômodo trancado e teve início a retirada de todos os
livros, vendidos para um sebo por pouco dinheiro e muito prazer. Juliano ainda pediu aos homens para que, antes
de irem embora, transferissem sua cama para o cômodo, agora vazio.
No
dia seguinte, ao abrir os olhos, o rapaz retomara a capacidade de enxergar,
tendo à sua frente a mais bela visão que poderia esperar na vida: aquele imenso
horizonte de estantes vazias.
Conto
escrito para o encontro de 07/07/2015
Walter
Macedo Filho é dramaturgo, jornalista, roteirista, escritor e gestor cultural. Integrou
o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral, coordenado por Antunes
Filho. Como gestor cultural, atuou no SESC São Paulo, Arena Carioca Dicró,
Biblioteca Parque Estadual e Instituto Augusto Boal. Publicou seu primeiro
livro de contos, Nebulosos, pela Editora 7Letras. Atualmente escreve o roteiro
para o novo filme do diretor Paulo Thiago após ter desenvolvido o argumento.
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