Miragem - Milena Goulart
Miragem
Da
calçada a avistei, imponente. A fachada estava refeita e um segundo andar foi
construído, ao que tudo indica, com blocos de cimento. Nisto pensei: seria
esperar demais, que o fizessem com pedra ferro tal como o restante da casa. Não
se fazem mais construções hoje em dia com este tipo de material altamente
resistente. De certo que foi ideia dos novos donos da livraria já que os
antigos (eu os conheci), teriam tido o cuidado de obedecer à estrutura
original. Mas é preciso dar o devido crédito a eles, a iniciativa de fazer uma
obra nestas proporções foi bastante ousada, considerando a cidade pequena e
inexpressiva em que está instalada.
No
momento em que pus meus pés aqui me ocorreu que talvez tivesse feito errado ao
partir. Não há nada nesta cidade, pouco mudou, mas tem o cheiro de casa. É como
uma mãe, que espera pacientemente pelo retorno de seus filhos que colocam o pé
na estrada, em busca de glórias futuras e redenções do passado. Eu voltei.
Ninguém vai me reconhecer. Nem eu mesmo me reconheço. Encarei minha imagem
refletida no vidro da porta da livraria.
Agora
são duas portas para entrar por causa do frio. Curiosamente o ambiente é gélido
muito diferente do local original, que frequentava quando criança. Conservaram
a lareira com o enorme relógio de ferro fundido no estilo do século XIX e
espalharam muitos outros, pelas estantes. A decoração é muito bela, melancólica
com seus móveis escuros e ouve-se o tic tac suave do tempo. Uma linda menina de
olhos claros, pele alva pergunta se desejo alguma ajuda. É jovem e bonita. Eu a
conheço, ela não me conhece. Quis abraça-la forte.
Em
um canto, perto das escadas que levam para o segundo andar, Iara, sentada,
olhava pra mim como sempre fez. Desta vez olhei de volta e nos encaramos por
uma eternidade de cinco minutos, antes que finalmente resolvesse me dirigir a
ela. Sentei-me ao seu lado o que jamais teria feito, não fosse a maturidade que
os anos me deram.
-
Noite passada eu sonhei com você. – cruzei as mãos – Estávamos em volta daquele
lago, nessa mesma estação e você me desafiou a subir numa daquelas árvores, que
ficam ruivas no inverno. “Vem, Evandro!” você sorria acima de mim, faceira, com
a certeza de que não iria mais além e estava certa, pelo motivo errado já que
nunca fui um covarde. Você sabe. Eu só queria ver você subir, feliz, o mais
alto que pudesse. O mais próximo do céu. Sempre achei que deus não lhe havia
feito justiça ao privar suas costas, de um belo par de asas ao nascer.
-
Isso não foi um sonho. – ela respondeu sem olhar-me nos olhos – Você tinha
cinco, eu tinha sete anos. Naquele dia, cai da árvore e quebrei um dente. Minha
mãe ficou uma fera, achou que a ideia tinha sido sua, porque brincadeiras
estúpidas como estas são coisas de menino.
-
Sim. – sorri – E apesar dos seus esforços para livrar minha cara sua mãe
proibiu você de me ver. Víamo-nos às escondidas para o deleite do meu lado mais
bandido, embora não tenha durado sequer um mês inteiro. E você não quebrou um
dente, quanto drama! Ele só lascou, na frente... Acrescentando um detalhe a
mais ao seu respeito. Uma interessante contradição.
Iara arranque de mim meus pensamentos se de
fato há mais mistérios entre o céu e a terra, do que sonha a nossa vã
filosofia. Senti tanto sua falta.
-
Por que veio falar comigo depois de tanto tempo? Tinha medo de mim?
-
Tinha medo de você por outras razões. Medo da verdade que não conseguiria
esconder diante da sua presença. Nunca guardamos segredos um para o outro. Mas
sei que você também teve medo, pois nunca respondeu minhas perguntas.
-
Não precisei esclarecer coisa alguma, você era meu amigo e sabia sobre meus
problemas dentro de casa.
-
Eu estava certo, então – olhei severo – foi seu irmão, não foi? Olhe pra mim,
Iara... Você não sabe quantas vezes temi ter cometido uma atrocidade contra um
inocente, só por este seu olhar, que me pesou para sempre na minha consciência.
-
Não tente me tocar! – Ela olhou sombria e assustadora – Eu pedi para que você
não se vingasse por mim. Você é um criminoso. Meus pais sofreram tanto e por
duas vezes, Evandro.
Olhei
para a menina que me atendeu, sentada e distraída a olhar para o nada.
-
Essa moça não tem pai, eu suponho. Ela se parece muito com você. Michele é o
nome dela, não é? Ela não herdou a livraria que era da sua família por quê?
-
A livraria foi vendida para quitar as dívidas do Pablo depois que ele morreu,
pois nos ameaçaram de morte. Por pouco não fomos à falência. Não há trabalho
por aqui, felizmente os novos donos gostaram dela.
-
Quer saber agora como ele morreu? As marcas entre suas pernas sequer tinham
sumido quando dei-lhe um tiro no meio da testa. Foi simples, ele estava bêbado.
-
Você vai pro inferno, Evandro.
Respirei
fundo e me levantei. Fiz que ia embora.
-
Evandro – Iara levantou os olhos – Por favor... Leve Michele embora com você.
Aqui nesta cidade não há nada para ela, não há ninguém. Faça isso por mim. Ela
não merece levar consigo a marca de um passado do qual não deu causa e tudo o
que seu coração mais deseja, é ir embora. Está vendo aquele armário ali no canto?
Escrevi uma carta para ela. Entregue-a. Faça isto por mim Evandro.
Eu
aceitei. Durante anos ela assombrou-me com sua presença, eu a via nas ruas, na
porta da minha casa, sempre a me observar para mim. Eu a evitei, fugi, mas
voltei para acertar minha dívida de consciência. “Eu prometo”, disse antes de
virar as costas e ir embora.
Senti
que não a veria mais.
Conto
escrito para o encontro de 07/07/2015
Milena
Goulart é advogada e estuda para seu concurso dos sonhos, embora se ligue
fortemente a coisas estranhas com um toque de drama e romance. Curiosa por
natureza a respeito das motivações belas e sujas, que dão substância aos atos
que nos tornam mais humanos do que gostaríamos de admitir.
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