Alice no vagão do metrô - Guido Brasil
Alice no vagão do metrô
“Meus
heróis morreram com HIV. Nossos inimigos ainda estão no poder.” No vagão do
metrô, sentada em um banco de cor verde, Alice vê fantasmas. Não fantasmas de
verdade, tipo alma penada, mas pessoas-fantasmas. Seres como você e o seu
vizinho. Tristes ou felizes, não importa, conformados. “Se eu soubesse rezar,
rezaria por você.” Carcaça em pé. Carcaça sentada. Gente comum. Envenenados
pela rotina. “Eu poderia ser cantora.” Os mesmos rostos, todos os dias os
mesmos rostos, olhares, conversas, cansados, sempre cansados. Ao lado esquerdo
de Alice, uma senhora, apática e cínica, na melhor condição de passageira,
brinca com um desses jogos barulhentos no celular. “Sorria, meu amor.
Compreenda os fatos. Aceite os dados.” A próxima estação é anunciada pela voz
irreal. As portas se abrem. Gente entra. Gente sai. Suspiros e ombros arriados.
Duas adolescentes com seus uniformes surrados do Pedro II falam alto sobre
meninos. Alice sua frio. Passa a mão no rosto. Suspira fundo para chegar ao
fundo do vazio. Os mesmos rostos, todos os dias os mesmos rostos, olhares,
conversas, cansados, sempre cansados. Em pé, um homem com os olhos fechados
cantarola baixinho a música que ouve no seu aparelho de MP3. “Não faça cara
feia. Nem pense em chorar.” Atrás dele, uma mulher com um tique nervoso pisca
duas vezes o olho direito e três vezes o olho esquerdo num intervalo de
aproximadamente dois minutos. Alice está toda dormente, acha que vai desmaiar.
“Sorria, meu amor. Nada vai mudar.” Resolve abaixar a cabeça na tentativa de
levar os pensamentos para outro universo. Escorregar para o mundo real. “Eu
seria uma ótima compositora.” Ainda faltam cinco estações até a sua. Cinco
estações e a vontade de gritar só aumenta. Sente um formigamento na boca. Um
gosto de mesmice. Alice gostaria de pedir ajuda. Mas, para quem? Parece o fim
do mundo. E todos os dias Alice reza para o mundo acabar logo. “Mas eu não sei
cantar.” E se cantasse talvez pudesse voar. Voaria como Mary Poppins ou a
noviça rebelde. Voaria como já voou em sonhos. Se Alice acreditasse em sonhos,
poderia, quem sabe, voar. Mas Alice não acredita.
Conto escrito para o
encontro de 23/06/2015
Guido
Brasil é autor do romance "Bizarros e Solitários", lançado em 2014.
Ator e roteirista da web-série "As Ideias de Sr. & Sra. Alguém".
Diretor e roteirista do curta "O Namorado".
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