A filha da Deise Doraci - Igor Dias



A filha da Deise Doraci

Estávamos eu e o Prof. Almeida na biblioteca central da cidade. Eu tinha treze anos. Ele havia me recomendado “Menino de engenho”, de José Lins do Rego, que nunca terminei de ler. É claro que, na hora, querendo a todo custo sustentar minha carapuça de erudição, disse que o leria. Tomei o volume emprestado com a dona Rosalva, bibliotecária que eu já conhecia de longa data, tanto quanto possa fazer sentido dizer ‘longa data’ quando minha vida ainda mal se abrilhantava de tão curta, tão estreita.

Era estranho que eu me sentisse tão à vontade com o Prof. Almeida. Eu o acompanhava quando ele saía da sala de aula, e, na minha cabeça, o que fazíamos era nada mais do que tentar engendrar uma amizade. Eu o admirava, e era só.

Minha mãe não aprovava nossa amizade. Dizia que eu era muito nova, que eu iria ficar falada, que nenhum menino iria me querer. Sei que no fim das contas a imagem com a qual ela mais se preocupava era a dela própria: “Olha lá a filhinha da Deise Doraci se engraçando com o professor de português”.

Mas eu sabia que podia confiar no Prof. Almeida. Nesse dia, em que fomos à biblioteca central, ele disse que ia procurar uma tese de doutorado sobre Adolfo Caminha, escritor de “A Normalista”, que até então eu sequer tinha ouvido falar.

Enquanto ele procurava a tese, eu me sentei para ler o livro no grande salão que dedicavam à leitura. Muito de soslaio, do outro lado, perto da janela, me olhava o Álvaro. 

Eu gostava do Álvaro. Fiquei olhando para ele também. Ele lia Dom Quixote. Álvaro não era dos mais inteligentes, coitado. Mas se esforçava e se dedicava às leituras; ele queria ser próximo do Prof. Almeida como eu era, e ele se esforçava, se esforçava muito.

Aliás, essa era uma época em que todos nós que não éramos capazes de nos impor pela força, no caso dos meninos, ou pela beleza, no caso das meninas, enterrávamos a cabeça nos livros no intuito de que o intelecto pudesse nos redimir de tudo aquilo que viesse a nos faltar.

Gastávamos o dia lendo em bibliotecas e livrarias, sustentávamos a todo custo uma aura de inteligência e interesse pelo debate quando na verdade morríamos de inveja deles que ficavam com elas e delas que ficavam com eles.

Olhei com alguma insistência para o Álvaro, que se intimidava e se concentrava na leitura. A um dado momento, à medida que o sol ia acabando do lado de fora, percebi que só havíamos nós três no salão de leitura: eu, o Álvaro e o Prof. Almeida.

Esse poderia ter sido o dia do meu primeiro beijo, com o Álvaro, o que só veio a acontecer na semana seguinte. Foi na cantina da escola, com gosto de guaravita, uma situação bem menos romântica do que o beijo surdo que sempre imaginei entre as prateleiras daquela biblioteca.

Mas se hoje, adulta, consigo descrever com muito mais minúcia aquele dia na biblioteca do que o dia do meu primeiro beijo, isto se deve a um acontecimento posterior.

Três anos depois, portanto aos dezesseis anos, eu estava na mesma biblioteca, com um livro aberto em cima da mesa. Eu estava meio sonolenta e dei um bocejo para voltar à leitura quando tive um estalo. Subitamente, me lembrei de que naquele dia eu estava com o menino de engenho, o Álvaro estava com o Dom Quixote e o Prof. Almeida se debruçava sobre a normalista. Os livros que cada um de nós líamos, naquele momento, reforçavam os nossos desejos mais secretos e os apresentava aos outros sob a forma de uma insuspeita coincidência.

Eu desejava o Álvaro-menino-de-engenho, o Álvaro desejava o Prof. Almeida-Dom-Quixote, e de alguma forma, o Prof. Almeida desejava a mim, normalista.

Éramos mais do que coincidência, éramos jogo. 

Sou capaz de escrever a palavra ‘subitamente’ ao me referir à percepção que tive aos dezesseis sobre aquela tarde na biblioteca aos treze. Só que, a essa altura do campeonato, eu já deveria ter aprendido a parar de acreditar nessas coincidências. Não foi coincidência e não foi súbito. O livro que eu lia meio sonolenta enquanto bocejava na biblioteca era uma coletânea do Carlos Drummond de Andrade, eu havia acabado de travar contato com aquele seu poema chamado “Quadrilha”.


Conto escrito para o encontro de 07/07/2015




Igor Dias nasceu no outono de 1987, na cidade do Rio de Janeiro. Participa dos coletivos literários "Clube da Leitura" e "Caneta, Lente & Pincel". É autor dos livros "Além dos Sonetos Breves" (poesia)  e "Dinamarca" (contos) ambos lançados pela Editora Oito e Meio em 2012 e 2015, respectivamente.

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