Vocês vão ter que me engolir - Maiara Líbano
Vocês vão ter que me engolir
Amanhece no vilarejo. Mais um dia
qualquer, de trabalho e mesmice, na vida de Fabiana. Todo o povoado se prepara
para a partida. Era dia de migração. Assim era a vida daquele povo errante.
Ainda que jovem, Fabiana não via mais emoção nisso. Nenhum romantismo. Um lugar
é só um lugar. E mudar nunca muda nada mesmo.
Apesar da cultura de seu povo, de
todas as restrições, Fabiana era uma espécie de ovelha negra, um ser às
avessas. Tinha sonhos incompatíveis com sua realidade, vontades alheias à sua
bagagem, ideias desconectadas de qualquer repertório. Fabiana tinha completa
consciência da impossibilidade de realizar seus desejos. Mas isso não a
frustrava. A saciedade inviabiliza a vida, costumava dizer. Para Fabiana, a
vida é um acúmulo de incompletudes. Acreditava que se morria quando as
incompletudes se somavam até a medida zero, até o vazio. Só o vazio pode ser
completo. Não tinha medo da morte, pelo contrário, tinha até uma certa
ansiedade. Era a única coisa que de fato aconteceria e que não se sabia nada
sobre. Isso é no mínimo instigante, costumava pensar.
Era sábado. Lucas acordou cedo.
De tanto acordar com o despertador para não se atrasar na escola, seu relógio
biológico passou a funcionar também aos finais de semana. Por enquanto nem pai
nem mãe acordara. Lucas estava inquieto. Bateu fome. Foi então pra cozinha
preparar um nescau e procurar uns pãezinhos pra comer.
Chegou na cozinha e deu de cara
com a pia toda suja. Seus pais receberam uns amigos na noite anterior. Lucas
gostava dessas noites de casa cheia. Gostava de dormir ao som da conversa dos
adultos no fundo. Só não gostava do dia seguinte, porque tanto pai quanto mãe
ficavam cansados e não queriam fazer nada, nem ir pra praia, nem levar pro
campinho. Hoje ainda era pior porque Matilde não estava trabalhando, tinha ido
pra Minas visitar a família naquele fim de semana. Lucas já estava imaginando
que o almoço daquele sábado, muito provavelmente, seria o frango da padaria.
Mas agora sua preocupação era mais emergencial, precisava comer qualquer coisa.
Acordou com fome. Foi o estômago que despertou o resto do corpo.
Pensou o que seria necessário pra
fazer seu café da manhã. Meticuloso, observou na enorme pilha os itens que
teria que lavar. Contou: uma colher, uma xícara, um prato e uma faca. De
repente percebeu uma estranha movimentação na quina da pia. Virou-se pra ver.
Era uma enorme trilha de mínimas formiguinhas. Riu sozinho daqueles seres tão
pequeninos, pensando o quão cansadas aquelas perninhas deveriam ficar só de andar
alguns poucos metros. Achando muita graça mesmo Lucas se abaixou pra ver melhor
aqueles bichinhos e de repente esbarrou com o braço na torneira....e splaaash!
Água pra todo lado!
Enquanto isso, Fabiana já estava
na estrada com a família. Iam como boias-frias tentar a sorte em outro lugar.
Lutando contra a miséria. Sua mãe seguia apressadamente com sua tia ao lado, as
primas chatas todas ali adiante. Todos caminhavam até que de repente uma
vibração estranha no chão, seguida de um som altíssimo anunciava o cataclisma. Uma
gigantesca onda desceu dos céus. A mãe e a tia até que tentaram se agarrar em
alguma coisa, mas a água as arremessou longe impiedosamente. As primas que
carregavam todas aquelas bagagens foram levadas pela segunda onda. Em meio ao
terror, Fabiana pensou em Deus. Será que existia? Por que imputava tamanho
horror àquelas vidas tão inofensivas? Seria Deus um sádico? Ou um bondoso frustrado?
Na verdade tanto fazia. Porque a enxurrada ainda caía. Além do quê, ser Deus e
frustrado é sadismo do mesmo jeito.
Do riso Lucas passou pro espanto.
Acabou fazendo mais zona ainda na pia! Mas tudo bem, papai e mamãe vão estar de
ressaca e nem vão notar a diferença. Lucas volta à sua operação inicial: lavar
a louça que precisava. Lavou a xícara, a colher e o prato. Secou. Abriu a porta
da geladeira, pegou o leite e o requeijão. Ao fechar, percebeu que estava com a
camisa toda molhada dos respingos da torneira.
Estragando seus planos, o céu, do
nada, anunciou uma chuva daquelas. Trovão, raio, vento. É verão e tem chovido
forte por ali. A janela da sala estava aberta. Mas Lucas não teve iniciativa
nenhuma de ir lá fechar. Ficou ali da cozinha olhando a chuva forte cair de uma
só vez, e os respingos invadindo a sala. E imaginou que tudo que vinha dos céus
eram também só pequenos gestos de um gigante. Que quando morresse seria porque
o gigante estaria nervoso, ou só lavando a louça dele mesmo.
O leite estava gelado. 30
segundos no micro. Duas colheres bem grandes de Nescau. Enfim estava pronto.
Lucas se sentou na mesa, suspendeu a xícara até a altura do rosto, e aproveitou
orgulhoso aquela sensação gostosa do vapor quentinho que lhe aquecia o rosto.
Foi quando o menino viu uma formiguinha dentro de sua xícara de chocolate. Era
o corpo de Fabiana, insignificante naquele profundo volume de 200 mililitros.
Conto escrito para o encontro de
23/06/2015
Maiara Líbano não é precisa, é
contraditória.
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