Travessia das Anêmonas - Márcio Couto



Travessia das Anêmonas


Era a oitava hora da décima sexta manhã de verão do octogésimo quinto ano do século décimo novo e era o segundo intervalo do vigésimo dia de aula do segundo período da faculdade de medicina e era Alice durante seu décimo sétimo ano de vida vagando pelos jardins de Oxford e surpreendendo-se com uma figura humanoide encapuçada e de rosto de espelho que a ofereceu um pedaço de cogumelo e este foi imediatamente ingerido pela garganta adolescente e eis que retornava curiosa e amargurada para as florestas místicas de um além melodia de um além disforia de um além esquizofrenia de um além entreacto de um além dissipação e viva! estou aqui. E yuppie! que alívio sentir estas lágrimas tal como são concebidas: filhas ternas de minha saudade – ao invés de poluídas pela vergonha, pelo disfarce e os olhares de gentileza dos estranhos. Que todos me ouçam: o mundo que se sustenta depois da murada dos olhos é uma tristeza sem fim! Tudo é difícil e nenhum ato é renunciável, nada volta atrás, tudo tem um peso de lástima e o tempo é linear feito abecedário, feito matemática... o quão insuportável é estar confinado nas correntes de um tempo que se expressa por números? Pois eu digo: que merda! Mas o perdoo mesmo assim, não por culpa dos horrores travados contra a foice e sua senhora mascarada de veios de rio selvagem e presas abarrotadas de ópio, e sim porque eu estava morta, dizem (mas e daí?). Agora vivo, e tudo o mais. Eu não desejo um grão a mais do que as coisas que tenho e o que tenho não desejaria por um grão a menos sequer. É estúpido ter de se fazer razoável, me recuso a ser sensata; daí que se volto por essas mesmas veredas de abandono é porque pretendo me detonar em nome da alucinação primeira: essa negação inescrupulosa que nos obriga a rejeitar a realidade no momento em que somos cuspidos ao mundo pelo entrepernas de gente prenha. Nunca existi nos campos de lá, não foi algo de voluntário e sim uma medida inconsciente, e cê sabe muito bem que medidas inconscientes se prezam um tanto mais honestas que as revisadas pela lucidez; minhas professoras nunca entenderam isso e eu só levava ferro em redação ano após ano, Deus sabe das estripulias que tive de coisar pra entrar em medicina – também o Diabo. No entanto ao afirmar de pés juntos que só me sinto viva quando desapareço sob as miríades de um céu incandescente não pretendo com isso negligenciar tudo que no mundo não se retrate pelo ventre da fantasia, e sim que certas pessoas nascem divididas entre o disparo e o dedo no gatilho, vivo minha existência encerrada aos pés de meus pesadelos e sou amante de sua voz lacerante de trovão. Eu resido na realidade que costuro de minha nostalgia. Ao menos residia, pois agora estou de volta! Que minha indecência escancare minhas fronteiras. Não é distante dos deuses e das sirenes e das ninfas e das bruxas que determino o meu tempo e espaço, mas a partir deles: são os mitos que – ao dançarem fronte a estas retinas famintas –  amolecem seu espírito mediante meu testemunho, e então velejo pela travessia do paraíso arquitetando dela minha ciranda. Daí que sempre quando tudo parecia mais que perfeito minhas asas se atrofiavam porque eu tinha de despertar e peregrinar submissa à escola, submissa ao papai e à mamãe, e aos benditos maldizeres ditando o que eu devo fazer de meu futuro. Sinto muito mas não nasci pro futuro; e tenho dito. Ah! como vai, coelhinho? Cê cresceu hein. Tá forte hein. Vigoroso hein. Tira a mão daí! O que cê quer comigo, ficou louco? Isso é antinatural! Miss Teniel me disse que viu o próprio irmão desvirginar uma ovelha no outono passado, ele só pode ser doente! Quando ela contou meu estômago se embrulhou e eu saí correndo: há pessoas que não devem se entregar à maldade do coração, contudo se o fazem isso não as torna mais pecadoras, apenas mais suscetíveis à flor de seus desejos. Há pessoas cujas sombras são claras feito o sol e outras cuja luz possui a majestade traiçoeira de um dragão: eu não sou de regrar limites, não sou de sentir remorso caso seja devastada por meus anseios, importa-me muito pouco o quão minhas angústias possam me dilacerar com seus tentáculos pegajosos que vivem para desperdiçar meu sangue, tampouco me interesso por me manter no controle: eu vivo pela epilepsia da descontinuidade; sou a tarântula dentro da toca injetando veneno na própria genitália, o meu corpo é intervenção & adulteração, quero a corrupção ingênua que desabrocha sem nome, e que se prolifera me embriagando com o pulso do delírio. Ora a vida é a mais miserável das paixões! Jamais terei medo dela! Eu não estou aqui mais que estive sempre, e ao dizer aqui quero dizer lá e ao dizer lá quero dizer lugar nenhum. Estou sempre nua no vazio, meu público é a serpente.

Adeus, queridos pai e mãe! Adeus, senhorita Babcock! Adeus, vovô Dodgson! E um adeus afetuoso aos que partilharam sua vida tediosa comigo, o quão grata sou por jamais terem me julgado; e até mesmo aqueles que o fizeram: saibam que não sinto rancor: pois as feridas que provocaram se curarão nesse bosque de vivências híbridas, nessa espiral vaidosa de ilusões. É tudo uma ridícula alegria enfeitiçada! É tudo ouro e sobremesa! É tudo um tesouro assombrado! Até nunca mais!

O que? Onde que... Ei! por que voltei?! Hãn? Como assim acabou? Não pode ser! Eu não quero ficar aqui! Eu não... Droga, isso não é certo! Tudo bem, como queira: jogarei seu jogo. Quanto é a dose? Quero tudo o que você tem.

Conto escrito para o encontro de 23/06/2015



Márcio Couto faz livro, arrisca poesia, e vez ou outra é pintor. No Rio nasceu e se desfolhou feito planta, só que diferente.

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