Espelho - Felipe Boaventura
Espelho
Com a
cabeça em muitos lugares como é próprio desses dias, eu andava na direção de
casa quando avistei a antiga livraria ainda aberta. Era final da tarde e
algumas lojas começavam a serem fechadas. Apertei o passo e ao empurrar a porta
secular de madeira, pude ouvir o sino que avisa um novo cliente. Tudo dentro
era silêncio, e os últimos raios de sol alaranjados despediam-se das capas dos
livros. A porta fechou-se e o tilintar do sino pode ser ouvido de novo.
Não havia
ninguém atrás do balcão no fundo da livraria. Como elas tem andado mal das
pernas os livreiros mudam com muita facilidade e eu não esperava encontrar um
rosto familiar. Fui até o meio da loja e como não via sinal de ninguém, entendi
que o funcionário poderia estar no estoque, e antes de ser surpreendido com a
informação de que estavam fechando, resolvi olhar logo os títulos nas
prateleiras para ganhar tempo.
Foi então
que ouvi passos na prateleira detrás da minha e pensando ser o livreiro
dirigi-me até ele. Minha surpresa é que onde devia estar o funcionário estava
um garoto de uns dez anos olhando os livros. Ao perceber minha presença
virou-se rapidamente para mim e depois continuou folheando os livros. Perguntei
então se ele havia visto alguém da livraria e ele com atenção em mim disse que
não.
Havia
algo naquele menino. Suas feições eram comuns, cabelo liso castanho, olhos
castanhos claros. Talvez o que me incomodasse fosse o fato de ser improvável
encontrar um menino dentro de uma antiga livraria no final de um dia de semana.
E ainda sozinho. Quis perguntar isso, mas antes que a pergunta saísse, ele
perguntou se eu sabia onde ficavam os livros históricos. Eu sabia. Apontei e
ele seguiu na direção com meus olhos grudados em suas costas.
Buscava
nada na seção de romance mexicano, remexendo livros a esmos enquanto observava
o menino. Ele compenetrado com um livro aberto e outro por abrir. Seria filho
de algum amigo? Mas da onde? Do trabalho não seria. Da igreja não era. Algum
amiguinho dos filhos? Como não vinha resposta e a estranha sensação aumentava
pensei em como abordar o menino.
Fui até
ele e perguntei distraído, gostou do livro? Sim, ele respondeu. Acho que você
terá que pedir dinheiro aos seus pais porque esse é caro. Ele chegou um pouco
para o lado de forma quase imperceptível mas eu notei, e disse um icônico é
provável. Eu também estaria desconfiado no lugar dele se um adulto que eu nunca
vira puxasse assunto numa livraria vazia. Ele como eu, também tinha a língua
presa, era verdade. Mas isso não dava nenhuma pista. Também se apoiava mais
tempo sobre uma das pernas, o que indicava que esta era menor do que a outra,
mas daí eu nada poderia concluir.
Ele deve
ter notado meus pensamentos porque virando-se perguntou se eu estava bem. Eu
sorri e disse que sim. Ele parado olhava nos meus olhos como quem busca ver
alguma coisa, talvez se eu estivesse falando a verdade, talvez tentasse ver que
tipo de pessoa eu seria. Sorri e disse que ele era um menino muito inteligente.
Ele perguntou porque. A sensação de estranhamento comigo. Porque você se
interessa por livros que não são indicados para sua idade. Ele então disse que
as pessoas falavam isso para ele, mas que ele apenas gostava de livros.
Eu
conhecia aquela argumentação. Como ele, também a ouvira muitas vezes. Então um “boa
tarde” no tom de quem quer fechar a livraria foi dado e ao fitar o funcionário
no balcão, o sino da porta tocou e o menino ia embora com as mãos nos bolsos.
Escolhi um livro e fui pagá-lo com a intenção de justificar minha estada ali,
mas na verdade, o que eu queria era saber algo sobre aquele menino, uma pista
qualquer que o livreiro desse sem perceber. Mas ansioso, perguntei se ele sabia
o nome daquele menino que acabara de sair, e para minha surpresa ele disse que
sabia e enquanto verificava o valor do livro, disse que havia perguntado a ele,
era Felipe Boaventura. Ao se dirigir a mim para dizer o preço do livro,
perguntou se estava tudo bem comigo porque eu estava branco. Só o que pude
dizer foi: esse é o meu nome.
Conto
escrito para o encontro de 07/07/2015
Felipe
Boaventura, editor da LetraTera - uma editora de livros e
cursos literários para a periferia - e
da Fala Quebradas! - uma
publicação dos alunos da Universidade das Quebradas (UFRJ). Palestrante e empreendedor cultural. Ganhador na categoria
de Narrativas Curtas da FLUPP em
2013. Colunista na revista Ponto de
Escambo e do site Leitor Cabuloso. Escritor, lançou seu
primeiro livro de contos "A Cidade é um Rim" pela editora
TextoTerritório em Maio de 2015. É membro do Clube da Leitura.
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