Vitrine de salgados - Andréa Rodrigues



Vitrine de salgados


Ele entrou no restaurante que, no passado, tinha frequentado com sua mulher, agora morta.

Uma década se passara. O ambiente assaltou-lhe a memória. Sentou e ficou tentando lembrar como estava sua vida dez anos antes. Quanta coisa acontecera. Encontros e desencontros. Mais estes do que aqueles. Caminhos inesperados, mudanças imprevisíveis.

Tudo ali parecia estar igual.  Deu um frio na barriga pensar que tudo segue seu curso mesmo quando alguém desaparece de um lugar. Era assim na cidade em que ele morara a vida inteira e que tinha deixado, logo que sua mulher morreu. As poucas vezes em que voltou lá, ele viu as pessoas andando pelas ruas, a cidade se movimentando: a ausência dele não fazia mesmo diferença.

Pensou que a morte deveria ser exatamente assim e que voltar a um lugar anos depois era vivenciar de uma certa forma a morte. “Vivenciar a morte”, que frase mais estranha.
O garçon já estava ficando aflito porque ele não fazia o pedido. Não conseguia se concentrar no cardápio. Em dez anos, ele tinha mudado de emprego, de cidade e o modo de ver a vida.  

Numa mesa próxima observou um casal, os dois pareciam ser uns dez anos mais jovens que ele. Havia um clima de discórdia. Ah, como ele queria poder ir lá e dizer que provavelmente o que estavam discutindo não merecia tanta atenção.

Olhou para o outro lado e viu que estava perto de um espelho. Assustou-se com sua imagem, dez anos mais velho, naquele ambiente, que frequentara antes mesmo de fazer quarenta anos. Como tudo era diferente, mesmo parecendo igual.

Em algum momento daquela década ele percebera que a vida passa mesmo, que o tempo existe sim, e vai passar mais rápido do que se imagina. E que constatar isso não o paralisava e sim provocava nele a vontade de continuar, de fazer escolhas com prazer e sabedoria.

Olhou finalmente para o cardápio. Lembrou-se bem do prato que a mulher gostava de pedir. Parou os olhos no prato preferido dele. Assustou-se mais uma vez. Ele não gostava mais daquele tipo de molho, nem daquela carne. Não entendia como havia gostado tanto um dia. Teria sido por influência da mulher que ele pedira aquele prato tantas vezes?

O garçon voltou, já com cara de aborrecido. Um restaurante no centro da cidade precisa rodar as mesas rápido. Não há tempo para ninguém ficar refletindo sobre sua última década de vida.

Levantou-se e saiu.

Em frente, uma lanchonete exibia uma vitrine de salgados, daqueles que ele gostava de comer na infância.


Conto escrito para o encontro de 09/06/2015




Andréa Rodrigues é professora de Prática de Ensino de Língua e Literatura na UERJ e frequenta o clube da leitura desde abril de 2013. 

Comentários

  1. Um lindo Conto...
    Simplesmente adorei, pois retrata muito da nossa realidade.
    Parabéns querida professora Andréa Rodrigues!

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  2. Um lindo Conto...
    Simplesmente adorei, pois retrata muito da nossa realidade.
    Parabéns querida professora Andréa Rodrigues!

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  3. Parabéns Andréa! Gostei muito do conto. Sua escrita está cada vez mais apurada, o desfecho é muito bom.

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