Lucila - Francisco Ohana
Lucila
Tug, vira-lata de uns treze anos,
avisa com histeria que chegou visita, e como este mato está alto. Ele
acompanha, com suas feridas assediadas de insetos, o filho envelhecido atravessar
o portão de madeira baixo e contornar a casa térrea pelo corredor lateral do
jardim, que a separava do terreno transformado em campo de pelada pelos netos e
agregados da família. E eles eram muitos, os agregados, tinha o Peteca, a
Mirtes, o João Simão – que também chamavam de Sabiá. Alguns o tinham visto ir
para o seminário, ser expulso de lá e voltar regularmente àquela rua eterna
para assentar como um peão cada pedra, cada, tijolo, cada telha da casa da mãe.
Ia buscar o material sozinho em São Paulo, negociava com uns tipos complicados na
Vila Guilherme. Ô, minha veinha, ele dizia trazendo a cabeça acinzentada de
Lucila contra o peito, beijando-a enquanto ela se apressava em desvencilhar seu
corpo daquele segundo enovelado nos fundos da cozinha, onde mexia com amargor seu
tachão de doces. O gosto mais feliz que existe, os doces da velha judia de
olhos azuis, bruxa de açúcar – tinha laranja, mamão, mamão com castanha e o
melhor, banana. Sentiu a frieza da cerâmica da sala de estar, com suas paredes
brancas delimitando os desníveis do ambiente, onde estariam suas irmãs? Havia
pouco, se empenhavam em querelas inúteis acerca dos cuidados com Lucila, se
comia torresminhos, seus cigarros e humor. Os passinhos do Tug no pátio eram o
tique-taque calorento do câncer que lambera três irmãos e agora ameaçava transformar
a casa, e o início da noite e o mundo inteiro em um caranguejo de mil patas.
“Delícia de macaxeira, veinha”,
ele dizia untando de manteiga o café-da-manhã.
“É da amarela.”
“A senhora que escolheu?”
Sempre era ela que escolhia, e
ter de mentir sobre a maciez da macaxeira o fazia pensar que as coisas talvez
não andassem muito bem por ali. Pode ser a vista. Momentos como aquele, em que
se via de novo buscando uma pitada de elogio da jocastinha, o deixavam muito
cansado. Preparou uma caneca de café com leite e açúcar mascavo, que apoiou
sobre o vidro da mesa de centro da sala, ao lado da cadeira de balanço de
mogno. Sentou-se. Este lugar é repleto de insetos, há esse tipo de mosca
azulada que parece mais resistente às investidas humanas e tiques caninos para
espantá-las, elas sempre aparecem quando fazem peixe ou doce na cozinha. Ele
capturou com o olhar seu voo de elogio à desordem, desfrutar pleno do momento
de percorrer, rente ao chão inútil, o caminho mais longo entre dois pontos. Saíram
juntos pela janela lateral, arremeteram para ganhar altura e ver de longe o
campo de barro, olha quem está ali, chutando bola pro gol, sobrevoaram o canil
artesanal, branquinho, do Tug, viram se aproximar em ansiosos rodopios o tachão
na área de serviço, o doce lentamente cobiçado pelos bichinhos do quintal. Onde
está Lucila, que não deixa uma xícara suja, um lenço desdobrado? Deram uma
imensa volta pelo outro lado, ele guiando o voo do inseto como se cavalgasse
nas chácaras da infância, como se houvesse descoberto enfim uma forma eficiente
de perscrutar os menores cantos do terreno disciplinadamente abandonado. Os pés
de carambola, as frutas passadas no chão, os jasmins-de-cachorro murchos, umas
tábuas soltas com cogumelos e um cheirinho de fumaça em cujos loopings embarcariam, na diversão de um heroi
demiúrgico que decide, interessado, parar no parapeito da varanda. Pousaram. E
ele poderia morrer todos os dias no que viu. Lucila rindo convulsivamente, como
se tossisse as piadas, ria dos fracassos esportivos do Limoeiro, time de
futebol do qual o João Simão era cartola. Seu riso se confundia com as
baforadas do cigarro que levava secamente à boca, como um bandido, diante da
inocência banguela e pançuda do João, que inchava dentro das roupas. Em vez de
enxotado, viu Lucila oferecer-lhe a mão para que pousasse o corpo inteiro no
seu colo magro. Para contarem histórias do tempo de seminário, de como era
lindo, loiro, dos tempos de goleiro. Coisas que o teriam feito correr de
vergonha. Mas não agora. Porque, dessa vez, os olhos azuis não deixavam ler sua
obviedade ranzinza, e sim sopravam a ideia de que ele, a
super-mosca-envelhecida, tinha sido sempre – sempre – seu filhote preferido.
O latido do Tug, galo vira-lata,
significa que o dia amanhece e a casa caiada volta a encher. Nem ele, nem
ninguém, sabe de onde essas pessoas vêm, se vão desaparecer de novo e por quê.
As meninas voltaram a discutir, o que dava ao velho a certeza infantil de que
nada daquilo seria pela última vez. Então viu Lucila atravessar a sala com
dificuldade, amparada pela filha mais nova, resmungando qualquer coisa de
incompreensível e suja, e sair sem se despedir pelo pequeno portão de madeira,
para o último dia de tratamento.
Conto escrito para o encontro de
26/05/2015
Francisco Ohana é economista e
participa de atividades que o mantenham ligado às artes, principalmente
literatura, teatro e música. Frequenta o clube de leitura do Baratos da Ribeiro
desde fevereiro de 2014.
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